domingo, 12 de fevereiro de 2017

É preciso falar sobre morte

Falar sobre morte?! Vamos mudar de assunto?! Não. Dessa vez não. É preciso falar sobre ela.  Não é raro escutarmos por aí que a morte é a única certeza que temos na vida. Sim, é fato, mas por que fugimos tanto dessa conversa?! Um dos motivos certamente é porque não é nada confortável encarar a nossa finitude. Queremos viver, temos sonhos, planos, projetos e a morte é também a interrupção de tudo isso. Outro motivo, para muitos de nós ainda mais desconfortável, é o medo de perder aqueles que amamos.  Só a possibilidade de isso acontecer dói, então, uma grande parte de nós anda por aí fugindo do assunto como se não falar sobre isso pudesse evitar que acontecesse. Infelizmente, evitar o tema não vai fazer com que a morte não aconteça. Caminhamos para ela desde o nosso nascimento e, embora a maioria não saiba onde, quando e de que forma ela se dará, sabemos que o fim do corpo físico é um evento inexorável. 


Nossos tempos estão aí tentando evitar a tristeza a qualquer custo fugindo de assuntos “desagradáveis”.  É proibido estar triste! Esta parece uma regra social da contemporaneidade. Nosso status de humor deve ser invariavelmente feliz, se possível, muito, mega, ultrafeliz. Tristeza em nossos dias não pega nada bem. No entanto, quando evitamos certos assuntos para não abalarmos essa nossa “felicidade”, engolimos as palavras secas e nos alimentamos de angústia.  É preciso vivenciar a tristeza e, mais ainda, a tristeza causada pela morte. O luto é um tempo importantíssimo e deve ser vivido e respeitado. É um tempo de recolhimento necessário para a cicatrização das feridas causadas pela dor da perda de alguém. Elaborar a tristeza até que ela se transmute naquela saudade gostosa em que as lembranças não nos ferem, mas nos apaziguam, leva algum tempo e é importante que não saltemos essa etapa. Silenciar, na maioria das vezes, não nos ajuda nesse processo. Quando estamos tristes e chorosos, é o momento de tocarmos no assunto.

Não quero dizer com isso que devemos nos render à tristeza. É, sim, preciso que  continuemos buscando o bem-estar, mas tendo consciência de que ele vai demorar um pouquinho para chegar. A tristeza faz parte do trajeto. Enquanto ela não passa, aproveitarmos o momento para vivenciar nossa dor é fundamental. Boas e saudáveis conversas podem nos ajudar a enfrentar e a elaborar nossas perdas. Não podemos esquecer que, se o tempo de luto se estender demasiadamente, é necessário que procuremos ajuda profissional. Tristeza é uma coisa, depressão é outra bem diferente. É bom que tenhamos isso bem claro.

A morte de um ente querido mexe conosco. Talvez muito mais do que imaginemos, seja lá qual tenha sido a sua causa. Quando alguém querido morre de repente, o impacto causado pela perda resulta em uma dor lancinante, causa um choque. Há que se lidar com essa dor imensa de um momento para o outro. Nada se pode fazer a não ser lidar com o fato. Quando alguém morre por conta de uma doença, em geral, familiares e amigos vivenciam cada uma das fases atravessadas pelo doente e, quando percebem que o fim daquela pessoa amada está próximo, a dor da perda, embora excruciante, teve um tempo para sua elaboração.  Naquele momento têm-se a chance de entender algo que a jornalista Eliane Brum fala tão bem em seu artigo Morrendo como objeto: “quando não se pode curar, ainda se pode cuidar”.  E a noção de cuidar precisa estar intimamente ligada aos desejos de cuidado daquele que está se despedindo. É preciso respeitá-lo.

Se esse alguém está hospitalizado, as equipes médicas e de enfermagem são fundamentais nesse tempo de transição entre a vida e a morte. Muito mais do que somente manter as funções vitais do paciente, esses profissionais podem auxiliar os familiares e amigos daquela pessoa a passarem por essa hora com consciência daquilo que está acontecendo, para que possam efetivamente dar o suporte afetivo que seu ente querido tanto necessita e merece. É muito interessante que os profissionais se lembrem que os familiares do paciente, no mais das vezes, não têm conhecimento técnico para lidar com alguém doente. É preciso orientá-los. Isso requer paciência. Simplificar a linguagem para falar com eles também é importante. É necessário que tentem traduzir os termos técnicos para que haja um perfeito entendimento da situação. Muitas vezes, quando um profissional de saúde se dirige à família do paciente, fala um milhão de coisas ininteligíveis para um leigo e, embora ele tenha dito tudo o que estava ocorrendo, efetivamente não houve comunicação. Se a equipe profissional, além de competente, é sensível, consegue ajudar a família a se estruturar para o momento da perda. Quando estruturada, as decisões a serem tomadas assim o serão com maior tranquilidade e visando o maior conforto do paciente. A morte é um momento delicado.

Reconhecer que não há mais nada a ser feito, além de oferecer carinho e conforto, é reconhecer que todos temos um limite e que esse limite deve ser respeitado. É o momento de pensar em uma morte digna, numa despedida pautada no amor e no carinho.  Vezes, nossos entes queridos, quando acometidos por uma grave enfermidade, enxergam o término de sua jornada antes de nós e nos revelam esse fato. É preciso ter claro que eles não estão desistindo da vida e tampouco de nós, apenas estão nos mostrando que a hora de partir está próxima e é inevitável. É tempo de despedir-se.

Despedir-se de quem se ama não é fácil. Dói, dilacera, nos enche de tristeza. É assim mesmo. Todavia a morte é sempre um momento de refletir sobre a vida. De rever convicções e prioridades. De realinhar projetos, de traçar objetivos. Porque a morte também é espelho e reflete a nossa finitude, ela sempre nos mostra que é preciso viver melhor.



Recomendo a leitura do texto de Eliane Brum "Morrendo como objeto".




10 comentários:

  1. Excelente texto. Voce encerra com "chave de ouro" trazendo a morte como um espelho que reflete a nossa finitude e isso deve ser motivo para que procuremos viver melhor.
    Li um artigo há alguns anos (não me lembro o autor) muito interessante que fazia uma analogia entre o assunto MORTE e SEXO. Antigamente as pessoas eram veladas na sala de casa onde todos (até as crianças) participavam e a morte era tratada mais naturalmente (mesmo com dor). Já assuntos sobre sexo eram totalmente proibidos (principalmente para crianças).
    Hoje a coisa se inverteu. As crianças não são são levadas aos velórios (quando se fala no assunto as pessoas batem na madeira e falam "Deus me livre") como se não fossem morrer um dia. E o sexo está no cotidiano, de forma até vulgarizada, até para as crianças.
    Voltando ao texto, realmente se a gente souber reconhecer a morte como parte da vida, apesar dá dor da perda, com certeza o sofrimento é menor, mais saudável, sem revolta.
    Ótima reflexão.
    Parabéns

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    1. Olá, Inês!
      Achei muito interessante essa contraposição entre o embargo dos assuntos morte e sexo em nosso cotidiano, sobretudo em relação às crianças. Nunca tinha pensado nisso. Hoje o tema sexo chega as nossas crianças com extrema facilidade muitas vezes por meio da música (não exclusivamente), mas é quase interditado no ambiente escolar, por exemplo, apesar de alguns avanços. É um assunto a ser pensado.

      A morte sempre me deixa algum recado, sempre nas perspectivas de viver melhor o tempo que tenho aqui e de evidenciar a minha finitude.

      Obrigada pelo carinho de sempre e por bater esse papo comigo aqui no blog.

      Beijos.

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  2. Excelente texto. Voce encerra com "chave de ouro" trazendo a morte como um espelho que reflete a nossa finitude e isso deve ser motivo para que procuremos viver melhor.
    Li um artigo há alguns anos (não me lembro o autor) muito interessante que fazia uma analogia entre o assunto MORTE e SEXO. Antigamente as pessoas eram veladas na sala de casa onde todos (até as crianças) participavam e a morte era tratada mais naturalmente (mesmo com dor). Já assuntos sobre sexo eram totalmente proibidos (principalmente para crianças).
    Hoje a coisa se inverteu. As crianças não são são levadas aos velórios (quando se fala no assunto as pessoas batem na madeira e falam "Deus me livre") como se não fossem morrer um dia. E o sexo está no cotidiano, de forma até vulgarizada, até para as crianças.
    Voltando ao texto, realmente se a gente souber reconhecer a morte como parte da vida, apesar dá dor da perda, com certeza o sofrimento é menor, mais saudável, sem revolta.
    Ótima reflexão.
    Parabéns

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  3. Texto excelente. Bom pra refletirmos. Parabéns!!!
    Eliza

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    1. Olá, Eliza!
      Como é bom contar com a sua leitura!
      Obrigada pelo carinho e pelo interesse de sempre.
      Isso não tem preço.
      Beijos.

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    1. Oi, Lumena!
      Como é bom saber que você tenha sentido verdade nesse texto. Você, como profissional de saúde, viveu muitas vezes o drama de pacientes, amigos e familiares na hora da morte e sabe da importância de atuação do profissional nesse momento.

      Beijo grande e obrigada pelo carinho de sempre.

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  5. Muito bom a morte por traazer uma dor intensa e pela cultura que vivemos onde é tida como algo soturno que pode acometer de quem dela se aproxime.
    Tudo isso com você bem colocou no início leva a fuga das emoções,'vamos mudar de assunto', falar de quem morreu é fundamental. A elaboração do luto e todo seu ritual é de suma importância para saúde mental. Difícil,algumas vezes é encontrar quem queira escutar.Em outras culturas como Japão ela é festejada.
    Em fim parabéns pelo maravilhoso texto e pela reflexão que possibilita.

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    1. Obrigada, Tania!
      Como você bem diz, o difícil é encontrar quem queira escutar.
      Beijo.

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  6. Parabéns pelo texto e a possibilidade de reflexão sobre sobre a morte. Assunto como você bem disse a maioria das pessoas evitam falar. Porém o luto é um ritual de passagem para adultos e e crianças e passando pelo luto é possível manter o equilíbrio e a saúde mental.
    Parabéns

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