domingo, 26 de novembro de 2017

Das orações naturais

"O bom samba é uma forma de oração."
(Vinícius de Moraes)

Sou do tipo que procura estar em oração e confesso que as orações naturais são as minhas preferidas. Observar o sol nascer lentamente ou vê-lo se pôr anunciando o fim de mais uma etapa. Ouvir a canção das águas de uma cachoeira, o barulho incessante do mar. Escutar o canto do vento e dos pássaros. Ver o céu azul que nos chama à vida. Perder o olhar nas árvores em flor. Sentir o perfume da rosa recém-brotada no quintal. São todas formas de me conectar com o sublime, de transcender o automático e o cotidiano.
Pôr do sol no Leme - arquivo pessoal

O mar salgando meu corpo é paz. O chocalho das conchas voltando nas ondas na beira da praia é louvor. A areia instável sob meus pés é lembrança de que a vida é também mudança e variação, mas que se pode equilibrar. O dourado do sol nas águas salgadas é pura iluminação. O pássaro que mergulha para pescar é beleza. Os movimentos e sons harmônicos do oceano sugerem meditação, encontro, conversa íntima com o Supremo, com o Criador, com Deus ou com qualquer outro nome que o Bem possa ter.

A lua nascendo é encantamento. O céu cheio de estrelas são infinitas possibilidades. Um entardecer cor de rosa ou alaranjado é o coração aquecido. As nuvens formando figuras no céu são sonho. O verde contrastando com o azul é graça. Pássaros voando são uma ode à autonomia. Fruta crescendo no pé, alimento. Água fresca na fonte, refrigério.

As orações naturais me acalmam e me levam à construção de minhas próprias orações. Hoje o vento assovia nos fios e frestas. Sacode as janelas, desassossega as folhas nas copas das árvores. O tempo cinza me diz que nem tudo é bonito, o ar está pesado e a chuva está num-cai-não-cai inquietante. O dia me lembra mudança, me diz que está do jeito que não é pra ser ou por outra, que ele pode ser muito mais do que isso. Traz-me à lembrança as potencialidades e me faz sonhar. Um dia cinza não é um ponto final, mas a véspera de um dia pródigo de sol e alegria. Tudo hoje me faz pensar no tempo de espera e preparação. Lanço mão de um livro.

Vezes, cerco-me de alguns outros tipos de oração: um poema, uma ida ao teatro, um concerto, uma crônica, um romance arrebatador, a tranquilidade de uma igreja vazia, um café com amigos, conversas com o filho, carinho dos pais. Sou do tipo que reverencia a beleza, o afeto e a liberdade. Liberdade de oração, inclusive.  Tudo celebro, agradeço e peço nas mais variadas situações. Tudo o que apazigua considero prece.

Rezar é coisa subjetiva. Cada um tem seu jeito de se elevar, de sintonizar as forças que equilibram o universo em busca do seu próprio equilíbrio. Muitas vezes rezei ao volante, num gostoso bate-papo divinal estrada afora em busca de soluções e de entendimento. Deus é simples e está em toda parte é bom não nos esquecermos disso.


domingo, 19 de novembro de 2017

Muito além de uma xícara de café


Para Douglas e Antônio
pela arte de servir café
c
om tempero de carinho


Torta de frutas secas - Sant`Anna Cafeteria
Era pra ser só um café, um momento de descontração no fim da tarde, um encontro comigo mesma. Já faz tempo que sou dessas, não adio descompromissos por falta de companhia. Teatro, cinema, show, recital, passeio, sorvete, café, nada obrigatório, descompromissos puros e prazerosos em que não cabem adiamentos. Se tem alguém para ir junto, ótimo. Se não, ótimo. Ontem foi assim, eu comigo, meus pensamentos, minhas sensações. Era pra ser só café, foi música, aroma, sabor e muita observação.  Como é bom terminar um dia em que tudo deu certo numa cafeteria! Um dia em que tudo dá errado também. Café é perfeito para um brinde ou como bálsamo.

Tudo corria do mesmo jeitinho: cardápio, simpatia, pedido, café. Clientes comportados e falando baixinho, como são os ambientes de cafeteria em geral. De repente, surge um menino. Ele, acompanhado por pais e avó, trouxe um bocadinho de inquietação àquele lugar. O pula que pula, a voz mais elevada, a brincadeira irreverente do pai com o garoto. Levei um susto. Não é que o rapaz estourou o pacotinho plástico que vem cuidadosamente embalando os talheres?! Ele mesmo se assustou quando se deu conta do que fizera. Eu ri, mas confesso que agitação não era exatamente o que eu estava procurando naquele lugar. Sou de silêncio e sons, ontem estava mais para a segunda opção.

A estada do menino por ali foi curta, como são próprias das paradas infantis em “lugares de adultos”, mas transformadora. Eu disse que era pra ser só um café, mas não foi isso o que se deu. Na saída, bem pertinho de mim, o garotinho deu de cara com uma vitrola. Foi um espanto. Ele jamais havia visto coisa igual e tampouco sabia para o que servia. Curioso, aproximou-se do objeto e crivou o pai de perguntas. O pai bem que tentava explicar na teoria, no entanto não dava conta de satisfazer à curiosidade do filho. Um pouco distante, o proprietário do estabelecimento observava tudo atentamente. Aproximou-se, desligou o som e ligou o toca-discos para o pleno  encantamento do menino. Pacientemente virou o disco e mostrou que do outro lado tinha mais música, o menino silenciou entre a surpresa e a maravilha. Recolheu a experiência, agradeceu e saiu dali levando uma história pra contar.

Eu sorri, dessa vez, emocionada. Havia presenciado um momento de fascínio e descoberta. Além disso, o sorriso generoso do proprietário do café ao ter servido ao menino um tanto de fascínio denunciava a sua satisfação e me fazia lembrar de uma bela crônica de Affonso Romano de Sant' Anna, que nos fala exatamente que “cada um tem um momento, um gesto, um ato em se que individualiza e brilha”. O moço tinha se iluminado ao encontrar o que tem de mais próprio em si: o prazer de fazer o outro se sentir bem, confortável. A cena foi simples, mas me deixou contemplar “o incêndio de cada um”: o menino colhendo frutos de sua curiosidade e o rapaz extrapolando o ato de servir ao doar-se.  Meu café terminou, pedi a conta, vim para casa, mas a poesia daquele instante está presente fazendo eco até agora. Era para ser só um café, mas foi beleza e testemunho dos fragmentos poéticos que a vida nos dá.

É bonito ver alguém fazendo aquilo de que gosta. O contentamento escapa-lhe pelos poros e nos atinge de alguma maneira. Lembrei-me de um balconista da lanchonete da faculdade, seu nome era Messias (eu me lembro e já faz 14 anos que deixei a universidade).  O pão era o mesmo, as frutas também, mas quando ele preparava o suco e o sanduíche, o sabor era diferente. O aprazimento no preparo agregava um tempero especial e inigualável. Há algo mágico que emana daqueles que estão no lugar certo fazendo aquilo que gostam. No lugar que desejam ocupar. A alegria deles nos contagia, vem conosco e nos faz mais ternos e felizes também, a gente se sente mais vivo. A vida é também essa maravilhosa mudança de roteiros. O fim da tarde de ontem era para ser só um café, mas foi muito além disso e, uma vez mais, a cafeteria fez jus a seu slogan.

Confira também a crônica "O incêncio de cada um", de Affonso Romano de Sant´Anna:
https://www.facebook.com/estacaomarisebender/posts/1882150905435258

Cafeteria Sant'Anna, eu adoro.
Rua Dr. Paulo Hervé, 1139
Bingen
https://www.facebook.com/santannacafeteria/





domingo, 5 de novembro de 2017

Como eu era antes de você


De repente a gente se dá conta de que viveu um grande amor. Um sentimento todinho maiúsculo e que, mesmo que não tenha durado a vida inteira, foi capaz de nos transformar para a eternidade. Não que não soubéssemos antes, mas agora essa certeza é ainda mais clara e pungente. E aí descobrimos que nossas vidas estão divididas em antes e depois desse amor. Que ele foi fundamental para o nosso crescimento, que nos fez conviver genuinamente com a partilha, com todas as nossas impossibilidades, que nos apresentou o respeito amplo e irrestrito pelo ser humano que somos. De repente nos damos conta de que fomos verdadeiramente amados e de que em verdade amamos. Que naquele relacionamento não havia rede de proteção. Que era saltar e ter certeza do amparo, do abraço, do afago, da escuta, do beijo, da cumplicidade, do encontro.

Há parceiros amorosos que nos mostram o melhor de nós. Que nos enxergam antes de nós mesmos, compreendem nossas falhas e nos apontam nossas possibilidades, que respeitam nosso tempo de chegada e, sobretudo, não nos apressam. São puro e autêntico acolhimento. Nos veem e, ainda assim, não se espantam, escolhem permanecer, somar, dividir, ouvir, calar e dizer. Escolhem trilhar o caminho lado a lado conosco em harmonia, transcendendo os solavancos que o dia a dia nos dá, ainda que por um tempo. Há encontros que são de corpos, de sentimentos e de almas e que, por isso mesmo, nos fazem querer ser amigos melhores, amores melhores, amantes melhores, pessoas melhores. Do convívio com alguém assim, saímos sempre uma versão aprimorada de nós mesmos. Inteiros e fortalecidos. Damos um upgrade em nossa humanidade. Isso não se mede.

São encontros que suplantam as lembranças e a presença, ficam vivos na pele, nas retinas, no coração, não saem de nós. São pessoas que passam pela vida da gente e fazem morada, ainda que resolvam partir. Gente encantada e encantadora que nos faz ver a vida de um jeito mais simples e que, mesmo ao ir embora, nos deixa a leveza e um refúgio de paz como herança. Gente capaz de plantar em nós uma essência de otimismo e esperança. De despertar nosso olhar mais colorido para a incrível oportunidade que é viver, bem como a habilidade para ver que a felicidade é o grande motivo e que ela existe mesmo em dias tristes ou repletos de saudade.

Há relacionamentos marcantes e amadurecidos que, por motivos, explicáveis ou não, não foram feitos para durar a vida toda. Quando isso ocorre, não há desespero na partida. Há dor, respeito e compreensão. Separação: prova de fogo para qualquer amor. Sua sobrevivência a um abalo desses, a constatação de que a liberdade é laço inquebrantável entre aqueles que se amam. Diante da ausência e da partida do amado, os telefones não tocam desesperada e desesperadoramente nem explodem em oitocentas mil mensagens de amor desaforado que não aceita a decisão do outro. Tudo é paz, ainda que uma paz dolorida e tristonha e que demore um tempinho para se tornar aquela falta gostosa de sorriso de canto de boca a cada lembrança. Há uma beleza cheia de dignidade nesse tipo de separação. O que fica é gratidão imensa por ter podido viver um relacionamento desse quilate. Por ter podido semear e colher a florada dessa relação. Por ambos saírem dela tomados de força e coragem.  A não ser a necessidade de um de partir e o desejo do outro de permanecer, tudo é recíproco. E o respeito suplanta todo e qualquer desejo. Não há espaço para cobranças ou acusações. 

A esta altura, você já sabe que o título desta crônica tem, sim, estreita relação com o filme inspirado no romance homônimo de Jojo Moyes, a que assisti e achei imperdível e fascinante, não apenas pelo grande dilema que propõe, mas por evidenciar as profundas mudanças que um amor pode causar em seus pares, sobretudo quando se está aberto para que elas aconteçam. Um amor assim não se esquece e, quando a saudade bate, ela é só saudade, autêntica e sublime, saudade-presença sem qualquer visgo de melancolia.  Amar é também se abrir, viver e descobrir, na contramão do que diz o poeta, que há amores que se sagram eternos porque duram infinitamente.

Observação:
Foto disponível em https://pixabay.com/pt/p%C3%B4r-do-sol-mar-de-barco-navio-675847/