sábado, 28 de maio de 2011

Letargia

Há coisas que insistem em acontecer em manhãs claras, ensolaradas, dessas que por si só ficam perpetuadas na memória da gente.

É nessas manhãs de todos os belos dias de sol que ocorrem continuadamente fatos que se despercebem pela força da rotina.

As pessoas caminham, passos firmes, determinados, com o claro propósito de chegar a seus mais diversos destinos, sejam eles a escola, o trabalho, ou simplesmente o completar de um exercício matinal. As gentes andam, correm, afobam-se taquicárdicas para evitar os atrasos... e num canto qualquer ele dorme. Num sono profundo, deitado nas calçadas, lá está ele adormecido. Sujo, magro, maltrapilho, a barba por fazer e ele não se importa com toda a correria que se passa a sua volta e descansa solenemente em praça pública.

Resolutos, prosseguimos e não paramos um só instante para pensar que por trás daquele corpo inerte, à deriva da vida cotidiana de toda uma cidade, há um homem, um nome, uma história... e ainda assim ele dorme. E não se importa com a sujeira da calçada ou mesmo em dividir seu leito sólido e árduo com um ou dois cachorros que se achegam.

Dorme. Dorme e repousa ignorando as campanhas dos políticos, as falácias da administração pública, as pregações nas igrejas, o estômago doído de fome. O que será que o trouxe até ali, que o deixou tão entregue às marés da vida? Será que teve um dia esperança? Ânimo? Qual será a sua história?

Há coisas que acontecem democraticamente em todas as manhãs, que tenham sol ou disponham da ausência dele. O que mudam não são os fatos, são os olhares. Um dia há um descortinar de olhos, um desvendar de mistérios e nos apercebemos de que o homem sempre esteve ali deitado à beira do caminho e, mais do que isso, que são vários os caminhos como também vários os homens. É um despertar doloroso porque, ao contrário daquele homem, não repousamos e vemos paulatinamente passar em nossa memória todos aqueles homens que não vimos. E vamos descobrindo que ele não é só, não tem um comportamento original. Bem ao seu lado há outro, mais adiante outro, em outra esquina outro.

Cruel é quando entendemos que eles dormem e nós, que pensamos estar bem acordados, ficamos todos embebidos nesse sono pérfido e letárgico que se chama indiferença.


sábado, 21 de maio de 2011

Liberdade, liberdade

É fato que aboliram oficialmente a escravatura no Brasil em maio de 1888. Maio evoca Liberdade.

É também fato que as heranças pungentes da escravidão permanecem em nossas piadas, hábitos, costumes, canções e outras coisas mais. Liberdade. Palavra tão propalada, mas árduo trabalho de construção. 

No Brasil ou em qualquer cantinho do mundo, ainda que estejamos no terceiro milênio, o ser humano mantém em seu DNA a imperativa vontade de dominar. A humanidade parece estar vocacionada à segregação. Pela  cor, pelo sexo, pelo poder, pela economia, pelas enfermidades, pela força, pela orientação sexual, pelo berço, pela religião. Tudo parece ser motivo.

É verdade que a sociedade tem espalhado sementes de diálogo e que aos pouquinhos vão nascendo a reflexão, o entendimento, a compreensão e as atitudes modificadoras dos padrões estabelecidos. Mas aí mesmo, para a modificação do comportamento  padrão, é que é ainda mais necessário o exercício da tolerância. Tolerância é coisa rara de se ver. As relações humanas são cheias de imposições.

Que o ser humano, individualmente, vezes, parece pensa mesmo que o mundo gira ao redor de seu próprio umbigo e que tudo aquilo que difere de suas convicções do que seja certo esteja radicalmente errado. O que é certo? O que é errado? Jamais podemos esquecer a História. Lá, nos registros do passado, está a chave para a compreensão dos nossos tempos, da nossa cultura e para a construção de um futuro mais livre. E preciso ter humildade e reconhecer que muita coisa que um dia já nos pareceu certa, hoje é comprovadamente equivocada. Recorrendo à História quantos equívocos não podemos ressaltar?

Liberdade é exercício. Ser livre e deixar o outro livre é aprendizado. Demanda uma dose imensa de coragem. Para a conquista da Liberdade é necessária a prática do respeito, da aceitação, da generosidade, da coragem de reavaliar os próprios  conceitos, para libertar-se dos conceitos pré-concebidos. Do contrário, o que se consegue é uma liberdadezinha assim toda minúscula.

Preconceitos são amarras. São grilhões. São ideias petrificadas que nos embotam a capacidade de raciocínio. Bom mesmo é ser livre o bastante para chegar aos conceitos. Para sentir a beleza infinita que há na diversidade.

Que a passagem pelo símbolo da Abolição dos Escravos possa ser o mote para um maio-liberdade-em-flor e que as flores de maio possam ser um dia símbolos da libertação dos radicalismos e das discriminações.


Foto disponível em:
https://pixabay.com/pt/suculento-planta-do-natal-cacto-1922167/

Um pouco sobre as flores de maio:
https://jardim.info/flor-de-maio



sexta-feira, 13 de maio de 2011

Afogamentos

                       A Affonso Romano de Sant´Anna pela
                   inspiradora forma de seus "Assombros".



Por vezes, sinto-me afogando
em desmedidos-demasiados sentimentos.

Em terra, insuficientes olhos enxergam
e me adivinham os sofrimentos.

Paixões, amores, ilusões...
tendenciosos-aliciantes tormentos.

Nas águas, maiores ondas:
maiores os movimentos.

Pulsa o peito, encharcam-se os pulmões,
em vão: esperneantes batimentos.

Mais me debato, mais se embaralha
o fio dos pensamentos.

Não há resgate.
Não há salvo-conduto.
Revôlto, angustiante o mar me consome
e em sal eu me consumo.


Imagem disponível no Pixabay

Leia também "Assombros" de Affonso Romano de Sant´Anna:
https://www.facebook.com/estacaomarisebender/photos/a.1714141135569570.1073741828.1708697116113972/1908161436167538/?type=3&theater

sábado, 7 de maio de 2011

Porque eu sei que é Amor

Sou do tipo de pessoa que analisa letra de música. Canto e penso no sentido daquilo que estou cantando. Não importa quem seja o compositor ou qual seja o ritmo, invariavelmente, se me leva a cantar, penso. Dia desses me peguei cantarolando uma música do “Titãs”: “porque eu sei que é amor eu não peço nada em troca...” Cantei e continuei cantando. Repetindo as frases. Analisando. Há coisas ditas nessa canção com as quais concordo, mas embatuquei nessa frase. Como não?! Porque eu sei que é Amor é que eu posso até não pedir assim rasgadamente, mas espero muito em troca. Aliás, porque eu sei que é Amor é que nem penso em pedir, pois a troca é pressuposta. Afinal, que graça há no Amor se não houver troca? Porque eu sei que é Amor eu espero Amor em troca. 

Amor é coisa séria. É sentimento grave. Fortalece e fragiliza. Há coisa mais inquietante do que amar alguém e não ter certeza do que é mesmo que ele sente por você? Inquietante?! Inquietante uma vírgula, um travessão, aspas, uma interrogação. Nesses casos o que há é uma enorme angústia. Um desassossego. A sensação exata de estar na corda bamba e sem sombrinha. Sente-se um bêbado procurando equilíbrio em meio à sensação de torpor. Em contrapartida, há sensação mais agradável do que saber-se verdadeiramente o Amor do seu Amor? Ser o Amor do seu Amor é beijar o sublime. É mérito enorme, visto que é conquista. E muito mais que isso é dádiva. É presente. 

Pedir em troca, esperar em troca. Deve-se pedir do Amor somente aquilo que se é capaz de lhe dar. Do contrário a balança desequilibra. O pedido pesa para um dos lados. Deve-se ser justo com o Amor. Olha aí outro verso da composição: “E eu peço somente o que eu puder dar” (Veja bem: quem foi que falou que não pedia nada em troca mesmo?!).

É preciso diferenciar pedir/esperar de cobrar. Não se deve cobrar do Amor. O Amor dá. Doa-se. Entrega-se. É um movimento natural: dar e receber o Amor. Entretanto, é prudente conhecer a natureza do Amor para saber o que dele esperar. Ele dá o que tem, o que é. Não há que esperar colher figos em uma plantação de maçãs. 

Necessário é esclarecer que pedir/esperar em troca não significa barganhar. Amor não aceita barganha. Há que ser uma espera lícita. O Amor atrai o Amor. O Amor gera Amor.

O Amor sabe das coisas. Sabe conquistar a cada dia, porque sabe renovar. Sabe valorizar. Sabe compreender. Sabe os seus limites. Sabe de si e sabe do seu par. Sabe porque está atento ao outro. O Amor conhece o outro. O Amor enxerga o outro. Não com o intuito de usar seus pontos fracos como forma de atingi-lo, de fazer uso de suas vulnerabilidades em causa própria. Sabe do outro para somar, para fortalecer, para amparar, para falar, para dividir, para silenciar, para respeitar. No entanto, há que se esclarecer que Amor não vem com bola de cristal a ele acoplado como se fosse um acessório de fábrica. É preciso sinalizar pro Amor. Mostrar a ele como se sente na relação. É fundamental dialogar com o Amor. Amor sabe das coisas, mas não é vidente. É essencial observar a diferença entre cobrar e sinalizar. Sinalizar é estabelecer um diálogo franco e amoroso com o Amor. Colocar-se e dar-lhe igual oportunidade de se colocar. Sinalizar não é fazer um julgamento do Amor. Não se vira para o Amor com ar de quem sacou uma arma e aponta para ele em tom de “mão na cabeça e documento!”. Carece não julgar o Amor. É preciso ouvir o Amor. Ouvi-lo de coração e com um coração generoso.

O Amor preserva. O Amor ali pra valer mesmo sabe a exata medida da distância e da proximidade. Sabe que saudade é bom, mas que distância com gosto de ausência é sinônimo de sofrimento. E sofrimento é ruim. É possível estar fisicamente longe e estar perto do Amor, como também estar fisicamente perto e estar longe do Amor. Quando duplamente perto o Amor está em festa.

Amor dá trabalho. Quem pensa que Amor é fácil, que é coisa à toa engana-se em larga escala. Não se pode ser displicente com o Amor. É preciso renovar o Amor. Cultivar o Amor. Cuidar do Amor, que sem cuidados, o Amor se esvai, se vai, se parte, se ressente. Transfigura-se. Há Amor por aí se transfigurando em muitos outros sentimentos: amizade, mágoa, carinho, rancor, bem-querer, indiferença. Indiferença é quando o Amor se perde. É possível um Amor se perder. Muitos se perdem. Perdem-se pelas mais variadas circunstâncias e atitudes: fatalidades, negligência, imaturidade, incompreensão, desencontro, desencanto, despreparo... mas quem é que quer perder o Amor? E mais, quem desejará perder-se do Amor? Amor dá trabalho, como já disse, no entanto é prazeroso laborar o Amor. Amor vale a pena. 

Porque eu sei que é Amor, realmente não peço nem uma prova. O que eu não peço, todavia espero são atitudes. Atitudes coerentes com Amar, atitudes coerentes com Amor. Carinho combina com amor. Compreender condiz com Amor. Chamego combina também. Atenção lhe cai como uma luva. Solicitude casa direitinho com Amor. Presença combina com Amor. Lealdade afina com Amor. Respeito é o par perfeito do Amor. E falo de respeito no sentido amplo: respeito ao ser humano que cada um é. 

“Porque eu sei que Amor, sei que cada palavra importa”. Verdade. Importa. Porque eu sei que é Amor é preciso que haja coerência entre o discurso e as atitudes. Se não há é falácia. E se é falácia, eu sei que não é Amor. E se eu sei que não é Amor, não há o que o meu Amor possa pedir,  muito menos o que possa esperar. Bem, mas se não é Amor, também não é nesse texto que cabe estar. 

Voltando aos versos que tanto me fizeram pensar procuro melhor ponderação, arrisco-me a compreender a frase da cantiga de outra maneira. Primeiro uma consideração: esperar alguma coisa de alguém é como fazer a ela um pedido de que só você mesmo sabe, mas que esse alguém intui o teor. Esperar de alguém é pedir em segredo. Se espero, peço veladamente. Pedir é explícito. Esperar é implícito. Agora ouso usar as considerações de um amigo para quem uma dupla negação é uma ampla afirmação. Logo, se não peço nada, certamente, é porque peço tudo: Amor. Não será essa uma boa interpretação?

Porque eu sei que é Amor, espero tudo que com ele combina. E quem, ainda que saiba que é Amor, não espera, que atire a primeira pedra.



Foto:
https://pixabay.com/pt/amor-praia-mar-areia-rom%C3%A2ntico-226756/