segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Um beijo da vida

Nos últimos meses, tenho observando o quanto foi difícil para mim escrever durante a pandemia. No mais das vezes, senti, calei e guardei na memória aquelas imagens e vivências tão angustiantes de um tempo em que quase não havia certezas. Também naquele momento em que chorar parecia o óbvio, minhas lágrimas se foram. Diante do desamparo do mundo, tive  textos e lágrimas embargados num recolhimento para além da proteção do corpo.

Os textos foram retornando aos poucos, mas o pranto, esse ficou contido até a última quarta.   

Nesse dia,  teve  "Som Brasil" com Milton Nascimento, Chitãozinho e Xororó apresentando o projeto "Outros cantos"  com narração, entrevista e comentários de Pedro Bial.  Em um isolamento produtivo, esse EP foi idealizado e gestado no período pandêmico e guardado até que fosse trazido à luz no encontro que gerou o programa.

O programa começa com imagens das avenidas e vias expressas vazias de medo, dúvida e precaução Brasil afora.  Lembrei-me das vias desnudas do mundo naqueles dias. Nó na garganta. Emoção. Até que, ao som d"A festa" de Bituca,  meu choro rompeu o silêncio áspero com que convivia há mais de três anos.

As lágrimas rolaram em desabafo com os potentes versos do refrão "me abraça, me aperta/me prende em tuas pernas/me prende, me força, me roda, me encanta/me enfeita num beijo", ao recordar daquele tempo em que o toque, o beijo, o abraço e a intimidade eram contraindicados pela ciência e que nós, atônitos, na contramão de nossos desejos, nos esforçávamos para cumprir as recomendações médicas.

Chorar foi o alívio de que vinha precisando há tempos. Hora de ficar sozinha entre cordas e acordes no ritmo latino e vibrante dessa canção que é pura pulsão de vida e que senti como um beijo.

Uma das expressões de Bial, logo no início da apresentação, dá conta de que a música foi um dos remédios que possibilitaram o enfrentamento e a superação daquele momento difícil. De fato foi. Quem não se lembra dos vizinhos cantando nas janelas e sacadas dos prédios na Itália ou dos shows feitos por artistas brasileiros nas varandas dos seus apartamentos? A humanidade se uniu em cantos para preservar sua existência e saúde mental.

O mundo pós-pandêmico tem sido um  desatino. Nem parece que aprendemos tanto sobre a fragilidade da vida e a necessidade protegê-la nos últimos anos. Assistir a "Outros cantos"  pode ser uma ótima opção dar-se "um pouquinho de saúde, um descanso na loucura".  O EP é puro amor e "de amor, andamos todos precisados".

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Carpe diem

É primavera. Os agapantos vestem a cidade de flor. Os dias estão abafados e chorosos. Novembro chegou vertendo saudade. Soprando lembranças. Pressupondo recolhimento. Não o recolhimento dos que se escondem, mas daqueles que refletem sobre a vida e seus ciclos impermanentes. E o que é essa impermanência senão um imperioso mote  para que se procure vivenciar cada experiência em sua plenitude?

"Carpe diem", lembrei de um filme de 1989, "Sociedade dos poetas mortos". Se fecho os olhos,  ainda ouço Mr. Keating, o protagonista e professor de Literatura,   diante das fotos daqueles que já haviam passado pela universidade: "colha logo seus botões de rosa". "Aproveite o dia!" 

Rosa era o nome de minha avó paterna. Mulher que, com sua simplicidade, nos ensinou muito sobre a experiência de viver. Senhora de dedo verde,  cultivava agapantos um ano inteiro para homenagear os mortos da família no dia de finados. Era nossa xamã, nosso totem e pajé (descendia de índios brasileiros). Com naturalidade, cabia a ela contar as histórias de nossos antepassados e os manter vivos em nossas memórias, bem como estar sempre pronta a abençoar nossos caminhos.

De certa maneira, sermos sobreviventes da pandemia, um desencarne doloroso e  coletivo, faz de nós pessoas que sabem e que experimentaram  a brevidade e fragilidade da vida. Nossos paradigmas foram mudados. Coisas de quem sente mais do que sabe que o tempo um dia cessa.

Dia desses, no aniversário de minha prima, conversávamos sobre os legados da pandemia. Para ela, a COVID-19 veio, entre outras coisas,  mostrar precisamos valorizar aqueles que estão perto no momento. Festejar com os que estão na festa. Focar na presença e entender as ausências. Para mim, a pandemia gritou alto e bom som que precisamos cuidar de nós integralmente: mente, corpo, espírito e escolhas.

A morte/os mortos nos falam muito sobre a vida. E, como dizia Vinícius, "a vida é pra valer,  e não se engane não, tem uma só".  

É preciso honrá-la.