terça-feira, 10 de julho de 2018

Felicidades bobas

Sou mulher de umas felicidades bobas. A gata brincando com a bolinha colorida espalhando o som do guizo pela casa. O café fresco perfumando o ambiente. A flor, presente de um amigo, brotando no jardim. Propostas de frutas no pé. Sabiás cantando em tardes de verão. O barulho do mar. A maresia. Uma noite de luar. O céu estrelado. O pôr do sol alaranjado no outono. O azul celeste no inverno. O fim de tarde em nuvens cor de rosa. O nascer do sol em qualquer estação.

Às vezes, alegro-me de um armário bem arrumado, de umas roupas distribuídas, de uns papéis rasgados. Outro dia me alegrei de sacar das gavetas as lembranças já sem importância de um relacionamento amoroso que se acabou em angústia. Deitar fora os antigos tesouros de uma relação que se perdeu tem textura semelhante à liberdade. Pode ser uma embalagem de perfume, um invólucro de um buquê de rosas, laços de fitas que vinham em presentes. Reminiscências que eram colecionadas para, de algum modo, fazer presente pessoa tão ausente. Há várias maneiras de constatar que uma falta deixou de ser sentida. Quando as “coleções de afetos” perdem o sentido, estamos diante de uma delas. A coleção se vai e deixa espaço e bem-estar do lado de fora e do lado de dentro também. Fica-se mais leve.

Sem mais nem menos, dia desses, me alegrei de um caldo. Começou simples, assim como quem não quer nada, descascando batatas salsa para pôr na sopa. Alho, cebola, tempero dourado no fundo da panela, alho poró. Creme. Sabor. Filho. Amigos. Gente querida. Mesa cheia. Suspiros denunciando delícia e satisfação. Conversa gostosa. Era pra ser um jantar, foi uma rodada de contentamento.

Num sábado, me alegrei de versos: fui ouvir poesia. No caminho para a Academia, a tarde ensolarada ia se despedindo em tons de vermelho. O sol peneirado pelas folhas das árvores da Praça da Liberdade convidava a fotos, cliquei. Depois de retratar a paisagem e em companhia de um amigo – e ter amigos que topam ouvir poesia em um sábado à tardinha é alegria imensa - perscrutei Bilac. Bingo! Felicidade tripla. Não deu outra: ouvi estrelas.

É bem verdade que nem sempre fui assim. Durante muito tempo, precisei de umas felicidades enormes que, curiosamente, pareciam balões de gás. Eram de extrema dificuldade para enchê-las e torná-las plenas, mas qualquer piquezinho, por menor que fosse, era capaz de esvaziá-las. Ser feliz era um cansaço. Um passeio de montanha russa. Desse sobe e desce não tenho saudade, o que eu quero mesmo é ser cada vez mais boba, dessa bobeira santa e redentora, que me faz feliz.

Felicidade é estar (e deixar-se) em paz.

----------------------------------------------
Publicado no Jornal Literário Dom Quixote em 02/08/2018, confira no link:
https://drive.google.com/file/d/1Pg5VfeV5wrkwWHECQa_qq6qVwFlncLir/view
Foto 1: Imagem disponível no Pixabay

8 comentários:

  1. Simplesmente felicidade.Simples sem complicações ou angústias.Sua felicidade me deixa feliz.Encotrando seu caminho. Feliz com a apropriação do que te faz bem.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada pela leitura, pelo carinho e pela torcida de sempre. Felicidade é coisa de dentro pra fora.
      Beijo grande.

      Excluir
  2. Olá, Marise! Já faz tempo que não apareço por aqui, não é mesmo?! :) Pois é, vim ver as novidades no seu Estação. E, alegria!, pude conferir o quão melhor fica a cada dia essa sua mistura em saber expressar mui gratificantemente toda essa sensibilidade em forma de 'palavras quase-imagens' de suas flores-natureza-belezas-amigos-família-etceteras que tanta felicidade te proporcionam. E paz, que tão nitidamente transparece naquilo que nos expõe com tantos detalhes. Encontrada por você nas coisas simples, que verdadeiramente é o que contam, estou contigo. Fez-me bem, fez-me lembrar que devo abrir minhas gavetas mais vezes, rasgar mais papéis e dispensar outrora aquilo que já consideramos 'tesouros' (dispensar com certa parcimônia, no meu caso). Fez-me ver também o quanto devo temperar melhor meus caldos, ouvir mais música, ler poesias e deixar-me ir, livre como um balão de gás rumo à felicidade etérea, mas felicidade.
    Grande beijo! E viva julho! :)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Márcio querido.

      É sempre um grande presente tê-lo por aqui pertinho dos meus textos e, portanto, pertinho de mim também. É uma alegria poder ter contribuído um pouquinho para que pudesse ver a sua necessidade de abrir gavetas e dispensar aquilo que não é mais tesouro. Aliviar o peso.

      Fico feliz que queira temperar os caldos e a vida com ainda mais sabor e intensidade. Adorei sua imagem do balão voando rumo à felicidade!

      Obrigada pela leitura e por colorir a minha vida com palavras, músicas, amizade e poesia.

      Beijo grande, carinho imenso.

      Excluir
  3. Que delícia de texto...
    Um texto/filme onde a gente vai lendo/vendo e sentindo.
    Sentindo o cheiro da sopa,a alegria redentora de se rasgar passados mofados, e a libertação de montanhas russas construídas em angústias. Fico tão feliz que você não sabe o quanto. Ser feliz bobamente é ser feliz com requintes de saber viver.
    Muitos beijos

    Eliza

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ah, Eliza!

      Você não sabe o tanto que me alegro que você tenha curtido tanto esse texto. Logo você, que vem acompanhando tão de pertinho esse meu processo de não embarcar em montanhas russas.

      Obrigada pela leitura, pelo carinho e por ser força e torcida na minha caminhada.
      Beijo grande.
      Gratidão imensa.

      Excluir
  4. Que texto, minha amiga!! Cada dia mais apaixonada pelas suas reflexões.
    Grande beijo!!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Tati querida.

      Que delícia encontrar você por aqui! Coisa boa saber que curte as reflexões, que se apaixona pelos textos. Obrigada, minha amiga! Saudade de nossas conversas pela estrada afora.

      Beijo grande e abraço apertado.

      Excluir