segunda-feira, 19 de junho de 2017

Caravana estonteante


Era perto das oito da noite quando todas as luzes do Theatro Dom Pedro se apagaram. Ouvia-se uma voz delicada e firme, cativante desde a emissão da primeira nota. Uma luz suave foi aos poucos trazendo os contornos do rosto e do microfone de onde brotava aquele som intrigante. Era a Caravana Tonteria desembarcando em Petrópolis ao som de “Paroupupti”, uma das composições de Letícia Sabatella, escrita na língua dos índios krahô, que habitam a região norte do estado de Tocantins.

Depois de a plateia explodir em aplausos e as luzes tomarem conta do palco, a cantora/atriz ou atriz/cantora - nesse caso a ordem dos fatores não altera o talento - faz uma breve referência à sua ligação com os índios krahô e sua admiração pela relação de respeito e harmonia que eles conservam vivendo em comunhão com a natureza e ressalta o valor do equilíbrio, palavra-síntese do ideal krahô.

Para quem já estava deliciosamente surpreso com a primeira canção, com a afinação e a força da voz de Letícia, havia algo inesperado: estavam presentes no teatro sua mãe e seu pai e isto a deixara visivelmente feliz e emocionada. É impressionante como a mulher tímida ao falar se transforma ao cantar. Parece duas pessoas, a que fala e a que canta, o que certamente lhe acrescenta uma dose extra de charme.

O show vai se desenhando e se revelando, e o encantamento é sempre em ordem crescente. De repente, surge um quase inacreditável “Retrato em branco e preto”. Um saboroso espanto aos sentidos. E, se alguém achava que tinha encerrado a cota de Chico Buarque naquela apresentação, irrompe no tablado uma performance cheia de personalidade de “Geni e o zepelim”.

Tango, mantra, português, inglês, francês, italiano, um toque de sapateado, um ambiente de cabaré, uma vertiginosa variação de ritmos e idiomas que inebria e arrebata todos incontestavelmente. Agudos, graves, sussurros e surge uma inesperada cuíca num buliçoso sambinha em plena apresentação. Eu disse cuíca?! Sim, eu disse, mas não era, era a vocalista mostrando mais uma de suas facetas musicais.

Há que se destacar o duo protagonizado pela artista e por Fernando, que tempera a encenação com humor, maestria e vitalidade.

Quando já não se sabia o que esperar, a moça convida sua mãe para que juntas cantassem “Legata a un granello di sabbia”. Tudo era poético. O visível carinho e cumplicidade entre a atriz e sua mãe. A delicadeza ao modular sua voz e simplesmente acompanhar D. Marilza Sabatella. A reverência com que a senhora foi conduzida até o palco. Tudo transpirava respeito e emoção. Um momento sublime, sem dúvida. Um presente para quem compareceu ao espetáculo.

A exibição chega ao fim e o público parece não crer que acabou. Aplaude de pé e, quando os músicos se retiram, silenciosamente senta-se e aguarda para ver o que acontecerá. Quando o baixista volta ao palco e desliga o instrumento, a esperança se esvai e, enfim, as pessoas começam a ir embora. Para quem não conhece Petrópolis, talvez seja surpresa perceber que o público é extremamente contido em pedir “mais uma”, mas dessa vez havia um certo desconcerto em saber como proceder. É show? É teatro? O que fazer? Nenhuma palavra, apenas o gesto incomum de aguardar. O público estava levemente ébrio e atônito. Era muita habilidade e informação para processar. Havia sido bom demais.

O talento dos músicos, a versatilidade de Fernando e Letícia, a perfeita interação entre eles em cena. Tudo é superlativo. Todas as palavras que usasse e todas as descrições que tentasse não dariam conta da grandeza da Caravana Tonteria no palco. Se não bastasse o meu próprio encantamento e o daqueles que me acompanhavam, encontro na saída do teatro um amigo que de pronto, antes de qualquer cumprimento, exclama: que mulher! Ali estava o mais perfeito resumo da noite de sexta: tudo eram exclamações.



MAIS SOBRE A CARAVANA TONTERIA:

A Caravana é formada por Letícia Sabatella, pelo ator e multi-instrumentista Fernando Alves Pinto e pelos músicos Paulo Braga e Zéli Silva. O espetáculo performático, que tem a direção de Arrigo Barnabé, conta com músicas autorais de Sabatella, canções de Chico Buarque, Colle Porter, Kurt Weill, Duke Ellington, Carlos Gardel e ainda outras referências.


Gênero: Show
Duração: 70 minutos
Composições e voz: Letícia Sabatella
Serrote, trompete, violão e voz: Fernando Alves Pinto
Piano: Paulo Braga
Contrabaixo: Zéli Silva
Direção artística: Arrigo Barnabé
Figurino: Chrystyan Kishida
Desenho de luz: Wagner Pinto
Direção de arte: Gustavo Guimarães
Roadie: Surabhi
Programação visual: Wagner Pinto

OUÇA:Paroupupti


OUÇA TAMBÉM:
Letícia Sabatella - Tonteria
Letícia Sabatella e Fernando Alves Pinto - Non, Je Ne Regrette Rien
Nico Fidenco - Legata ad un granello di sabbia

As fotos me foram cedidas por Sonia Lucia Caldara Quintella

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