domingo, 9 de julho de 2017

O inesgotável Machado de Assis

Para Gerson Pereira Valle,
pelo empenho em fazer da academia
um espaço bem mais próximo dos mortais.


Apaixonada pela figura e pela escrita de Machado de Assis, de modo geral, recuso-me a perder qualquer oportunidade de ouvir um pouco mais sobre ele. Sábado foi dia de programação na Academia Petropolitana de Letras e, para o meu deleite, o assunto era justamente Machado. Há vários aspectos na vida e na obra do escritor que me fascinam. Tanto assim, que muitos estudantes que já passaram por minhas aulas, de um modo ou de outro, logo reconhecem minha paixão pelo autor.

 Machado de Assis - 1904 -(fonte: g1.globo.com) 
Gosto de apresentá-lo em sala de aula primeiramente como o sujeito que enfrentou uma série de dificuldades e que, a despeito disso, chegou à notoriedade. Como muitos sabem, Machado era mulato, nasceu no Morro do Livramento, era filho de um pintor de paredes e de uma lavadeira açoriana e ficou órfão de mãe muito cedo. Tinha epilepsia, isso numa época em que muito do desconhecimento sobre a doença, sustentava uma série de crenças de que hoje, felizmente, muitos nem têm conhecimento.  Sempre friso que, sem meios para os estudos regulares, o escritor estudou da maneira que pôde. Foi um autodidata que, além de chegar à presidência da Academia Brasileira de Letras, foi um de seus fundadores. Aí está um verdadeiro legado de superação e de amor à cultura. Machado é o cara!

Gosto de contrapor a trajetória do literato ao personagem Brás Cubas e de extrair daí as oposições entre um e outro. Machado tem, em certo sentido, uma trajetória inversa à de Brás Cubas. Era pobre, buscou instruir-se por meios próprios, tinha uma série de dificuldades a enfrentar, cresceu profissionalmente, conheceu o amor e venceu, alcançando notoriedade e deixando para a vida uma herança de valor inestimável: sua obra. Brás Cubas foi um menino mimado, que tinha todas as condições para alcançar a notoriedade e que a desejava como ninguém. Estudou em Coimbra, graduou-se em Direito e, no entanto, terminou seus dias num capítulo de negativas. Não alcançou a celebridade, não teve sucesso na almejada carreira política, não conheceu o casamento e se vangloria pelo fato de nunca ter tido que suar para garantir o seu sustento. Ainda nesse último capítulo, Brás Cubas afirma ter se vingado da vida não deixando a ela nenhum herdeiro ou, como diz, de não ter transmitido a nenhuma criatura o legado de sua miséria. Machado, apesar de não ter tido descendentes, transmitiu e transmite a cada um de nós uma perpetuação de si mesmo, através das inesgotáveis leituras e possibilidades de seus textos. Com sua atualidade, ele sobrevive ao tempo.

Como sempre me interessei pelos homens e mulheres que escrevem, ou seja, pelos autores dos livros e não somente pelos livros e, como trabalho com adolescentes, sempre entendi que apresentar o indivíduo com todas as suas emoções, com toda a sua humanidade, com as suas honras e agruras, fosse uma boa estratégia para despertar-lhes o interesse pelos autores e, consequentemente, por suas obras. Sou daquelas que acreditam que a sacralização dos medalhões literários distancia um tanto o estudante da literatura. Para apaixonar-se é preciso afeto, na literatura não é diferente.

No caso de Machado, sempre procuro apresentá-lo como, além do ícone de superação que ele é, o sujeito apaixonado por Carolina. Costumo inclusive levar alguns registros da amorosa correspondência do autor para sua Carola: “és tão dócil como eu; a razão fala em nós ambos. Pedes-me cousas tão justas, que eu nem teria pretexto de te recusar se quisesse recusar-te alguma cousa, e não quero.” Não é fascinante ver esse lado de Machado? É enternecedor, por exemplo, o registro das saudades de Machadinho (como ele assina uma das cartas endereçadas a ela): “Obrigado pela flor que me mandaste; dei-lhe dous beijos como se fosse em ti mesma, pois que apesar de seca e sem perfume, trouxe-me ela um pouco de tua alma. Sábado é o dia de minha ida; faltam poucos dias e está tão longe!” Machado ansioso pelo encontro com a amada? Sim! A ponto de sentir alterações na noção de tempo. Tão humano, tão próximo a nós e isso é tão rico.

Depois da morte de Carolina, o autor compõe um belíssimo soneto capaz de nos aproximar da dor e da saudade que o poeta – sim, ele é poeta também - sente da amada. A composição poética tem três versos tão pungentes que, a eles, é impossível ficar indiferente.  Belos e tristíssimos versos que denunciam a dor da separação causada pela morte do ser amado: “Trago-te flores – restos arrancados / Da terra que nos viu passar unidos / E ora mortos nos deixa e separados". Como não levar “A Carolina” às salas de aula?

Bem, acabo de fazer uma digressão e entrar em uma sala de aula. Hábito?! Paixão?! O fato é que me afastei do real motivo de escrever esta crônica: a palestra de ontem. O tema, “Inovações narrativas na obra de Machado de Assis”, era muito menos revelador que a realidade oferecida na fala apaixonada, envolvente e com muita propriedade do Professor Pierre da Silva Moraes, de Nova Friburgo. Lá pelas tantas, estava a plateia completamente seduzida, curiosa e embriagada pela grandeza de Machado de Assis e pela fluência do professor.  Foi um encontro memorável.  Todos aprendemos. Todos.

O docente trouxe, com riqueza de detalhes, a estada do autor em Nova Friburgo para recuperar-se de um adoecimento e a estreita relação desse período com a composição da obra “Memórias póstumas de Brás Cubas”. De acordo com os seus estudos, o Machado realista teria sido gestado durante o tempo passado naquela cidade serrana. Diante da possibilidade real da morte e de todos os diálogos internos que tem um homem que se vê próximo a ela, Machado dá uma guinada em sua obra e chega à criação do defunto autor. Eu jamais havia parado para pensar na relação vida e obra do autor sob essa ótica. E foi a primeira vez em que conjecturei que, então, talvez viesse daí a expressão defunto autor: um sujeito quase morrendo - ou pelo menos que pensava nessa possibilidade - escrevendo uma narrativa bastante diferente daquelas que já produzira. Achei fantástico. Foi uma leitura possível, através da palestra.

O palestrante trouxe muita novidade acerca da virada na vida e na obra do escritor, ou seja, desse renascimento de Machado, homem e autor, e da ligação desse fato com Nova Friburgo, além de referências a Alfredo Bosi, Massaud Moisés, entre outros renomados críticos literários. Ademais, Pierre encaminhou um paralelo entre os recursos usados atualmente pela televisão, por exemplo, e as inovações na narrativa de Machado no sentido de deixar sua obra aberta. Ele ressaltou que, de certo modo, a interatividade já estava presente nas obras primas do autor, já que ele requer a participação do leitor e torna possível mais de uma leitura para seus romances, como se pode constatar em “Dom Casmurro”. Nessa obra em particular, o leitor tem elementos para acreditar e defender as teses de que Capitu traiu e de que Capitu não traiu Bentinho. Cada leitura, cada olhar e cada interpretação é uma possibilidade.

Todos na plateia ficaram igualmente mobilizados e, depois da explanação, houve uma profícua conversa acerca da literatura. E, nessa conversa, estiveram presentes, além de Machado de Assis, José de Alencar, Lima Barreto, Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, entre outros. Faz-se necessário destacar a fala de um professor – de que infelizmente não sei o nome - que trouxe à baila a necessidade da valorização da produção poética de Machado de Assis, além de seus textos para o teatro. Entre a apresentação de Pierre e a posterior conversa sobre as informações trazidas e as provocações lançadas por ele, foram quase três horas de interação. Foi um espaço para constatações, exposições, compartilhamento de pontos de vista e insights e, é preciso salientar, que o debate terminou em seu auge, com gosto de quero mais e com muitos outros assuntos aventados para as próximas discussões. Machado é mesmo uma fonte inesgotável para a leitura e para os estudos. Foi uma noite de autêntica fruição literária. Que venham mais noites assim!


O SONETO PARA A ESPOSA FALECIDA:
Carolina Augusta Xavier de Novais - 1879

A CAROLINA
Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.
Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs o mundo inteiro.
Trago-te flores, - restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados,
Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos da vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.

(Machado de Assis, in Relíquias de Casa Velha)



ALGUNS LINKS INTERESSANTES


UM POUCO SOBRE O PROFESSOR PIERRE DA SILVA MORAES:

(Estas e outras obras completas disponíveis em pdf)
http://machado.mec.gov.br/obra-completa-menu-principal-173/168-teatro

2 comentários:

  1. Muito bom ler seu texto, Marise Bender! Muito grata e meus parabens!

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    1. Ah, Tia Inez!
      Eu que agradeço sempre o carinho e a leitura.
      Beijos.

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