Para Gerson Pereira Valle,
pelo empenho em fazer da academia
um espaço bem mais próximo dos mortais.
um espaço bem mais próximo dos mortais.
Apaixonada pela figura e pela
escrita de Machado de Assis, de modo geral, recuso-me a perder qualquer
oportunidade de ouvir um pouco mais sobre ele. Sábado foi dia de programação na
Academia Petropolitana de Letras e, para o meu deleite, o assunto era
justamente Machado. Há vários aspectos na vida e na obra do escritor que me
fascinam. Tanto assim, que muitos estudantes que já passaram por minhas aulas, de
um modo ou de outro, logo reconhecem minha paixão pelo autor.
Machado de Assis - 1904 -(fonte: g1.globo.com) |
Gosto de apresentá-lo em sala de
aula primeiramente como o sujeito que enfrentou uma série de dificuldades e que,
a despeito disso, chegou à notoriedade. Como muitos sabem, Machado era mulato,
nasceu no Morro do Livramento, era filho de um pintor de paredes e de uma
lavadeira açoriana e ficou órfão de mãe muito cedo. Tinha epilepsia, isso numa
época em que muito do desconhecimento sobre a doença, sustentava uma série de
crenças de que hoje, felizmente, muitos nem têm conhecimento. Sempre friso que, sem meios para os estudos
regulares, o escritor estudou da maneira que pôde. Foi um autodidata que, além
de chegar à presidência da Academia Brasileira de Letras, foi um de seus
fundadores. Aí está um verdadeiro legado de superação e de amor à cultura. Machado
é o cara!
Gosto de contrapor a trajetória
do literato ao personagem Brás Cubas e de extrair daí as oposições entre um e
outro. Machado tem, em certo sentido, uma trajetória inversa à de Brás Cubas. Era
pobre, buscou instruir-se por meios próprios, tinha uma série de dificuldades a
enfrentar, cresceu profissionalmente, conheceu o amor e venceu, alcançando notoriedade
e deixando para a vida uma herança de valor inestimável: sua obra. Brás Cubas foi
um menino mimado, que tinha todas as condições para alcançar a notoriedade e
que a desejava como ninguém. Estudou em Coimbra, graduou-se em Direito e, no
entanto, terminou seus dias num capítulo de negativas. Não alcançou a
celebridade, não teve sucesso na almejada carreira política, não conheceu o
casamento e se vangloria pelo fato de nunca ter tido que suar para garantir o
seu sustento. Ainda nesse último capítulo, Brás Cubas afirma ter se vingado da
vida não deixando a ela nenhum herdeiro ou, como diz, de não ter transmitido a
nenhuma criatura o legado de sua miséria. Machado, apesar de não ter tido descendentes,
transmitiu e transmite a cada um de nós uma perpetuação de si mesmo, através
das inesgotáveis leituras e possibilidades de seus textos. Com sua atualidade, ele
sobrevive ao tempo.
Como sempre me interessei pelos
homens e mulheres que escrevem, ou seja, pelos autores dos livros e não somente
pelos livros e, como trabalho com adolescentes, sempre entendi que apresentar o
indivíduo com todas as suas emoções, com toda a sua humanidade, com as suas honras
e agruras, fosse uma boa estratégia para despertar-lhes o interesse pelos
autores e, consequentemente, por suas obras. Sou daquelas que acreditam que a
sacralização dos medalhões literários distancia um tanto o estudante da
literatura. Para apaixonar-se é preciso afeto, na literatura não é diferente.
No caso de Machado, sempre
procuro apresentá-lo como, além do ícone de superação que ele é, o sujeito
apaixonado por Carolina. Costumo inclusive levar alguns registros da amorosa correspondência
do autor para sua Carola: “és tão dócil como eu; a razão fala em nós ambos.
Pedes-me cousas tão justas, que eu nem teria pretexto de te recusar se quisesse
recusar-te alguma cousa, e não quero.” Não é fascinante ver esse lado de
Machado? É enternecedor, por exemplo, o registro das saudades de Machadinho
(como ele assina uma das cartas endereçadas a ela): “Obrigado pela flor que me
mandaste; dei-lhe dous beijos como se fosse em ti mesma, pois que apesar de
seca e sem perfume, trouxe-me ela um pouco de tua alma. Sábado é o dia de minha
ida; faltam poucos dias e está tão longe!” Machado ansioso pelo encontro com a
amada? Sim! A ponto de sentir alterações na noção de tempo. Tão humano, tão
próximo a nós e isso é tão rico.
Depois da morte de Carolina, o
autor compõe um belíssimo soneto capaz de nos aproximar da dor e da saudade que
o poeta – sim, ele é poeta também - sente da amada. A composição poética tem
três versos tão pungentes que, a eles, é impossível ficar indiferente. Belos e tristíssimos versos que denunciam a
dor da separação causada pela morte do ser amado: “Trago-te flores – restos arrancados
/ Da terra que nos viu passar unidos / E ora mortos nos deixa e separados". Como não levar “A Carolina” às salas de aula?
Bem, acabo de fazer uma digressão e entrar em uma sala de aula. Hábito?! Paixão?! O fato é que me afastei
do real motivo de escrever esta crônica: a palestra de ontem. O tema, “Inovações
narrativas na obra de Machado de Assis”, era muito menos revelador que a
realidade oferecida na fala apaixonada, envolvente e com muita propriedade do
Professor Pierre da Silva Moraes, de Nova Friburgo. Lá pelas tantas, estava a
plateia completamente seduzida, curiosa e embriagada pela grandeza de Machado
de Assis e pela fluência do professor. Foi um encontro memorável. Todos aprendemos. Todos.
O docente trouxe, com riqueza de
detalhes, a estada do autor em Nova Friburgo para recuperar-se de um adoecimento
e a estreita relação desse período com a composição da obra “Memórias póstumas
de Brás Cubas”. De acordo com os seus estudos, o Machado realista teria sido
gestado durante o tempo passado naquela cidade serrana. Diante da possibilidade
real da morte e de todos os diálogos internos que tem um homem que se vê
próximo a ela, Machado dá uma guinada em sua obra e chega à criação do defunto
autor. Eu jamais havia parado para pensar na relação vida e obra do autor sob
essa ótica. E foi a primeira vez em que conjecturei que, então, talvez viesse
daí a expressão defunto autor: um sujeito quase morrendo - ou pelo menos que pensava nessa possibilidade - escrevendo uma
narrativa bastante diferente daquelas que já produzira. Achei fantástico. Foi
uma leitura possível, através da palestra.
O palestrante trouxe muita novidade
acerca da virada na vida e na obra do escritor, ou seja, desse renascimento de Machado,
homem e autor, e da ligação desse fato com Nova Friburgo, além de referências a
Alfredo Bosi, Massaud Moisés, entre outros renomados críticos literários. Ademais,
Pierre encaminhou um paralelo entre os recursos usados atualmente pela
televisão, por exemplo, e as inovações na narrativa de Machado no sentido de
deixar sua obra aberta. Ele ressaltou que, de certo modo, a interatividade já estava presente nas obras primas do autor, já que ele requer a participação do leitor e torna possível
mais de uma leitura para seus romances, como se pode constatar em “Dom
Casmurro”. Nessa obra em particular, o leitor tem elementos para acreditar e
defender as teses de que Capitu traiu e de que Capitu não traiu Bentinho. Cada
leitura, cada olhar e cada interpretação é uma possibilidade.
Todos na plateia ficaram
igualmente mobilizados e, depois da explanação, houve uma profícua conversa
acerca da literatura. E, nessa conversa, estiveram presentes, além de Machado
de Assis, José de Alencar, Lima Barreto, Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, entre
outros. Faz-se necessário destacar a fala de um professor – de que infelizmente
não sei o nome - que trouxe à baila a necessidade da valorização da produção
poética de Machado de Assis, além de seus textos para o teatro. Entre a
apresentação de Pierre e a posterior conversa sobre as informações trazidas e
as provocações lançadas por ele, foram quase três horas de interação. Foi um
espaço para constatações, exposições, compartilhamento de pontos de vista e
insights e, é preciso salientar, que o debate terminou em seu auge, com gosto
de quero mais e com muitos outros assuntos aventados para as próximas
discussões. Machado é mesmo uma fonte inesgotável para a leitura e para os
estudos. Foi uma noite de autêntica fruição literária. Que venham mais noites
assim!
O SONETO PARA A ESPOSA FALECIDA:
Carolina Augusta Xavier de Novais - 1879 |
A CAROLINA
Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.
Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs o mundo inteiro.
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs o mundo inteiro.
Trago-te flores, - restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados,
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados,
Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos da vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.
(Machado de Assis, in Relíquias de Casa Velha)
Pensamentos da vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.
(Machado de Assis, in Relíquias de Casa Velha)
ALGUNS LINKS INTERESSANTES
UM POUCO SOBRE O PROFESSOR PIERRE DA SILVA MORAES:
http://avozdaserra.com.br/noticias/entrevista-machado-de-assis
OS DOIS MACHADOS, POR ALFREDO BOSI:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/29132-os-dois-machados.shtml
SOBRE JOAQUIM MARIA DE MACHADO DE ASSIS:
OS DOIS MACHADOS, POR ALFREDO BOSI:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/29132-os-dois-machados.shtml
SOBRE JOAQUIM MARIA DE MACHADO DE ASSIS:
CURIOSIDADES:
http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2016/09/foto-rara-de-machado-de-assis-presidindo-abl-e-encontrada-veja.html:
OUTRAS FONTES:
http://assessoria.vrc.puc-rio.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=19042&sid=77
MACHADO. ESCRITOS PARA O TEATRO:
http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2016/09/foto-rara-de-machado-de-assis-presidindo-abl-e-encontrada-veja.html:
OUTRAS FONTES:
http://assessoria.vrc.puc-rio.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=19042&sid=77
MACHADO. ESCRITOS PARA O TEATRO:
(Estas e outras obras completas disponíveis em pdf)
http://machado.mec.gov.br/obra-completa-menu-principal-173/168-teatro
http://machado.mec.gov.br/obra-completa-menu-principal-173/168-teatro
FOTO DE CAROLINA DISPONÍVEL EM:
http://www.correioims.com.br/carta/foi-se-a-melhor-parte-da-minha-vida/
http://www.correioims.com.br/carta/foi-se-a-melhor-parte-da-minha-vida/
Muito bom ler seu texto, Marise Bender! Muito grata e meus parabens!
ResponderExcluirAh, Tia Inez!
ExcluirEu que agradeço sempre o carinho e a leitura.
Beijos.