terça-feira, 25 de julho de 2017

Entre linhas

Não nasci em uma família de leitores contumazes. Apesar disso, sempre tive incentivo para a leitura e para os estudos. Os pais liam, mais jornais e notícias do que literatura, mas liam. Digo liam, assim no passado, porque hoje com a tecnologia ao alcance das mãos, leem mais e têm uma leitura mais diversificada também.

A memória pode nos trair algumas vezes, então, é meio complicado saber exatamente quando foi que o interesse pela leitura deu partida em minha história. Revirando o baú das lembranças, vou encontrar lá longe, na terceira série do primeiro grau, era assim que se falava, a Tia Magali. Era uma professora primária, de uma escola pública estadual e que já inovava em seu modo de estimular os alunos. Com todas as limitações que encontrava, promovia gincanas e desafios entre os estudantes para a realização das tarefas e os prêmios eram, entre outras coisas, revistas infantis e gibis. Meu primeiro prêmio significativo nessa séria brincadeira foi uma revista “Nosso amiguinho”. O exemplar trazia uma historinha, bem como uma narrativa lúdica sobre algum fato histórico. Essa é a primeira lembrança do contato com textos que me despertaram o quero mais. O desejo por mais e mais revistas daquele tipo nasceu daí.

A essa altura minha mãe, vendo que eu gostava de ler, já providenciava uma ou outra coleção infantil para que eu pudesse viajar nas páginas dos clássicos contos para crianças. Depois disso, por ter uma irmã portadora de necessidades especiais e por isso representar uma enorme dificuldade para a “aceitação” dela em escolas – naquele tempo não tinha lei específica para isso – acabei por ser matriculada na Escola Viva, que já fazia a chamada educação inclusiva em melhores moldes que os de hoje. Como a preocupação com a leitura fosse uma constante naquela escola, havia uma série de eventos nesse sentido. O ponto alto desse incentivo era o trabalho com alguns autores ao longo do ano e a presença de um deles na  Feira  Anual do livro.

O primeiro autor que me despertou fascínio foi Carlos de Marigny. Tinha lido ”Detetives por acaso” e “Os fantasmas da casa mal assombrada” e o sujeito escrevia de um jeito que me acordava o interesse por mais e mais aventuras.  Marigny foi o primeiro que me fascinou. Também ele escreveu o primeiro livro em que embatuquei. Tínhamos leitura de férias e o livro indicado para a minha turma era “A ilha das borboletas azuis”, eu começava e recomeçava e começava de novo e não conseguia avançar na leitura. Já quase no fim das férias, que eram longas, diga-se de passagem, consegui vencer a dificuldade e adorei o texto, coisa que revivi algumas vezes no correr dos anos. Há livros que não conseguimos ler de prima, é preciso insistir.

De lá pra cá, a vida seguiu seu curso entre Pollyannas,  O pequeno príncipe, O menino do dedo verde, É proibido chorar até chegar a adolescência e eu fazer, o que seria na época, minha primeira leitura clandestina. Um dia, no sótão de casa, descobri um livro que tinha um título particularmente interessante. Não tive dúvidas. Passava horas escondidinha lendo “O amante de Lady Chatterley”. E foi delicioso! Ri, chorei, tive raiva, compreendi e devorei o livro encantada com a literatura pra gente grande, que eu acabara de descortinar. O texto de D. H. Lawrence falava dos conflitos humanos, das encruzilhadas da vida, das escolhas, das diferenças entre as classes sociais e até de amor, desejo e sexo.  Foi precisamente aí que me apaixonei pelos dramas existenciais humanos.

Bem, mas por que estou falando de tudo isso? É que hoje é o Dia Nacional do Escritor e eu me peguei pensando em como foi que esses caras começaram a me interessar e fui buscar a minha vida de leitora, fazer uma retrospectiva. Cheguei até aqui, mas uma questão me inquieta: como nascem os nossos escritores favoritos? Para falar sobre eles, preciso me lembrar dos tempos da faculdade.

Decidi fazer Letras depois de muito tempo de amadurecimento, o que para muitos podia ser uma escolha óbvia, para mim estava submersa entre as tantas vozes do mundo, entre tantas escolhas possíveis. Nesse sentido, demorei a amadurecer. Passei muito tempo ouvindo as vozes de fora, sem reconhecer as vozes internas. Por incrível que pareça, tive a felicidade de conviver com alguns colegas que também iniciaram aquela faculdade na mesma época da vida, cada um com sua história, claro.  Minha turma era mesclada: havia os muito jovens, os jovens e os mais maduros e isso era muito rico.

O afeto sempre teve um papel importante para mim e, nos bancos acadêmicos, fui descobrindo pessoas que tinham, mais que autores preferidos, uma relação afetiva com eles. Desse modo, fiz uma outra leitura daqueles mesmos escritores a partir do olhar apaixonado de minhas amigas. Nanci era encantada por Fernando Sabino, Isabela por Rubem Braga e Claudia por Mário Quintana. Nanci lia o Fernando por entre as linhas de seus textos, Isabela suspirava com a poesia presente nos escritos de Braga e Cláudia era tão apaixonada por Quintana que sua mãe,  percebendo isso, num gesto delicado de amor e generosidade, fez uma jardineira de miosótis na janela do quarto da moça. E o que têm os miosótis a ver com isso, hão de me perguntar. Bem, eles são nada mais nada menos que as flores preferidas daquele poeta. Já pensaram nisso?! O fato é que, depois de conhecê-las, gosto mais de Fernando, de Rubem e de Quintana.

Embora apreciasse alguns escritores e alguns até muito, ainda não tinha encontrado aquele que falaria assim tão perto da minha maneira de sentir o mundo. Ainda não conhecia alguém que fizesse ecoar a sua voz dentro de mim. Era 2000, eu tinha 28, começara a faculdade e estava passando pela crise dos 30. É, passei por ela, mas adorei fazer 40, vai entender. Procura daqui e lê dali, encontrei num site uma crônica cujo título me interessara sobremaneira: “Fazer trinta anos”. Comecei a leitura achando ser mais um texto sobre os 30 e fui descobrindo que era o texto sobre os 30. E fui destacando frases, como de costume, “Fazer 30 anos, bem poderia dizer Clarice Lispector, é cair em área sagrada”, “Quando alguém faz 30 anos, não creiam que seja uma coisa fácil”, “Fazer 30 anos é como o mineiro vê pela primeira vez o mar”, “Mas fazer 30 anos é como sair do espaço e penetrar no tempo. E penetrar no tempo é mister de grande necessidade”, “Por isso é necessário ter asas e sobre o abismo voar”.  Aquelas palavras, bem naquele momento singular de minha vida, ficaram reverberando em mim. Me encantei, claro, e reli em voz alta e quis conhecer o que mais escrevia aquele autor. Affonso Romano de Sant´Anna, o nome dele. E procurei textos e mais textos, e comprei livros, e li crônicas, e li poemas, e li ensaios, e li críticas, e li teorias e o dividi com os amigos e alguns amigos o repartiram comigo, e concordava e, vezes, até discordava do que ele dizia, mas seus textos eram/são de suma importância pra mim. Aquele homem era um manancial e eu estava fascinada. Não tive dúvidas e passei a comprar “O Globo” aos sábados exclusivamente por conta do caderno “Prosa e Verso”, u-ni-ca-men-te por conta do autor. Devo confessar que jamais perdoei aquele jornal por tê-lo deixado de publicar.

Sem perceber, minha leitura de mundo passava pela leitura de mundo daquele escritor, eu buscava nos jornais o que ele estava pensando sobre determinado assunto, o que ele estava escrevendo sobre o tema. Tinha nascido o afeto. Naturalmente, palavra por palavra foi surgindo em caixa alta o MEU ESCRITOR PREDILETO.

Em 27 de março deste ano, Affonso Romano fez 80 anos. Produzindo, adaptado às novidades tecnológicas, cheio de inquietações e encantador como sempre. É bonito ver uma trajetória como a dele. Parabéns pra ele! Leio o mundo, a vida, as situações, as pessoas entre as linhas de muitos autores, mas Affonso é o cara que me ajudou/ajuda a ver mais poesia no mundo, a respeitar meu tempo, a analisar as situações sobre vários aspectos, a ver com clareza as regras nem sempre claras da nossa sociedade. Affonso é o cara que me ajudou/ajuda a ler o mundo que, aliás, é o título de um de seus livros, com mais serenidade, crônica e cronologicamente. E é por isso que, com  imenso respeito a todos os escritores do mundo, é pra ele que gostaria de desejar de modo especial Feliz Dia do Escritor! Feliz dia, Poeta! Feliz dia, Professor!

E você já parou pra pensar como o seu escritor favorito chegou na sua vida? A quem felicitaria de modo especial nesta data?


FAZER 30 ANOS,  de Affonso Romano de Sant´Anna
http://www.releituras.com/arsant_30anos.asp


OUTROS TEXTOS DO AUTOR:
O homem-bomba
https://www.facebook.com/estacaomarisebender/photos/a.1718157488501268.1073741829.1708697116113972/1718155915168092/?type=3&theater

Despir um corpo a primeira vez
https://www.facebook.com/estacaomarisebender/posts/1804460883204261:0

PROJETO RELEITURAS (vários textos de vários autores)
http://www.releituras.com/arsant_menu.asp

4 comentários:

  1. Grande prazer o meu ler sobre todas estas tuas lembranças de livros... eu também amo os livros e os escritores, mas não tenho prediletos. Quem me marcou muito com suas letras foram Clarice Lispector e Gustave Flaubert, intenso com o seu A Educação Sentimental.

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    1. Minha querida. Que bom é também não ter um predileto. Affonso é aquele que fala mais perto, mas há tantos outros. Amo Clarice, sabe? Ela me desconcerta sempre e gosto disso. Fala umas verdades e me deixa meio atônita, me faz pensar, me sacode. Flaubert é um nome bom até de pronunciar, não é mesmo?E tantos, tantos outros. Adorei a presença e o carinho de sempre. Obrigada.

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  2. Marise Bender, gostei muito de ler o seu texto e ir encontrando nele pontos de afinidade. Affonso Romano está também entre os meus escritores preferidos. Mas, lendo você, não pude deixar de me lembrar do que disse Charles Nodier: "Depois do prazer de possuir livros, não há quase nenhum mais doce do que falar deles." Mas me lembrei também de um texto belíssimo da nossa querida Marina Colasanti, "Como se fizesse um cavalo", o livro é uma pequena joia publicado pela Pulo do Gato. Não deixe de ler, você vai amar! O casal Affonso/Marina é mesmo uma dupla incomparável! Vou escrever mais, por e-mail, mas falta ainda dicer a você que continue. Seu blog está muito bacana! Um grande abraço e muito sucesso!

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  3. Luzia de Maria. Em primeiro lugar, muito obrigada pela leitura e pelo carinho em escrever. Gostei de saber que temos afinidades. E, sim, vou encomendar o livro de Marina e me deleitar mais um pouquinho. Obrigada também pela dica e também pelo incentivo. Esse negócio de transformar minhas sensações e leituras em letras é mais forte que eu, apesar da timidez que quem me conhece de pertinho já não mais consegue identificar.
    Um forte abraço.

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