domingo, 11 de junho de 2017

Um olhar atento para a crueldade desnuda

 “Se a bondade de vocês é tão cruel
nem imagino como seja a justiça." 
(O Homem Elefante)

De todas as maravilhas que o Teatro pode fazer por nós, a que mais me encanta é a de nos colocar frente a frente com o espelho. Espelho da nossa alma, do nosso tempo, da nossa sociedade e tantos outros espelhos igualmente necessários e possíveis. Ir ao espetáculo O Homem Elefante no Theatro Dom Pedro aqui em Petrópolis foi, verdadeiramente, um desses momentos de contemplação da nossa sociedade e de nossa (des)humanidade no espelho.

Foto divulgada no facebook do Sesi Cultural
Baseada no texto de Bernard Pomerance, a conhecida história de Joseph/John Merrick, um rapaz portador da Síndrome de Proteus, uma rara doença degenerativa causadora de várias e graves deformações em seu corpo e que, por conta disso, virou atração em shows de aberração na Inglaterra do século XIX , ganha vida com a Companhia Aberta e nos põe cara a cara com as deformidades de uma sociedade dura e cruel, que em muita medida, com o passar dos anos, não evoluiu tanto assim.

Na peça, o menino, que fora abandonado pela mãe, o jovem maltratado, agredido e explorado por aquele que o exibia publicamente com a finalidade de obtenção de lucro, toca nossas sensibilidades e nos traz um olhar aguçado sobre a humanidade e suas contradições. Ao assistir à peça, é impossível deixar de notar uma sociedade dura e cheia de dualidades: a mesma imagem que gera repulsa e que dificulta o estabelecimento de laços afetivos com Merrick é a que atrai olhares cheios da mais perversa curiosidade e que duramente aproxima as pessoas dele. Se num primeiro momento, é fácil atribuir a Ross, o dono do circo em que era exposto, toda a crueldade sofrida por Joseph, com um pouquinho mais de atenção, não se pode negar o mal que tantos olhares adoecidos e tantas agressões físicas e verbais lhe causaram.

Na pele do protagonista, o ator Vandré Silveira nos impressiona e nos insere com maestria no drama da personagem. As expressões corporais, os gestuais, os gritos lancinantes de um ser humano acorrentado e querendo se libertar das torturas físicas e emocionais a que era submetido, não só nos conduzem para o universo de Merrick, como são capazes de despertar em nós empatia e angústia.

Com a cabeça cheia de sonhos e de sensibilidade, John nos encanta, emociona e nos faz questionar os valores de nossas convenções sociais. Em que medida as regras nos protegem? Em que medida elas nos condenam? Que regras devemos seguir? Em que momento devemos quebrá-las para a realização de um sonho? É correto alguém impedir a realização de um sonho que não é seu?

A representação da relação entre o rapaz e o Dr. Frederick Treves, o médico que o ajudou a levar uma vida mais digna, é um capítulo à parte. Longe da tentadora visão Ross = Mal e Treves = Bem, a peça rompe com o lugar comum do maniqueísmo e expõe seriamente a relação bondade/vaidade/posse em contraposição à liberdade. Impossível sair do teatro sem refletir sobre a questão.

A aquisição da oralidade por John é um ponto alto de sua transformação. Para quem gosta das letras, ver tão explicitamente a fala como facilitadora para a relação com o mundo e ver tal habilidade se construindo diante dos olhos é, sem sombra de dúvida, fascinante. Para quem gosta da Arte, é um prato cheio assistir a relação entre o rapaz e a Sra. Kendal, uma famosa atriz e amiga do Dr. Traves, se fazendo. A ligação afetiva entre os dois põe em evidência o quanto a presença da arte pode ser transformadora na vida de uma pessoa e o quanto pode ser surpreendente olhar além das aparências. Depois de observar os dois, difícil é não se afeiçoar a John.

Engana-se quem acredita que, com um texto tão intenso e dramático, o clima fique pesado o tempo todo. Com uma atuação primorosa de todo o elenco, a Companhia Aberta nos leva do drama ao humor numa troca de luzes e cenário, num estalar de dedos. Um humor fino, inteligente e com a precisão cirúrgica imprescindível para a interação com o público.

Ir ao teatro conferir a montagem é constatar que, se a sagacidade, a inteligência e a sensibilidade de John, estiveram inalcançáveis para os muitos que, a olho nu, só viam o homem elefante, o olhar cruel da sociedade estava o tempo todo afiado e à mostra e, ainda assim, não era notado, era tratado com naturalidade. Por si só este já é um bom motivo para comparecer ao teatro, além disso, a peça é um incontestável espetáculo.

SOBRE A MONTAGEM:
Texto: Bernard Pomerance
Idealização: Companhia Aberta
Encenação: Cibele Forjaz e Wagner Antônio
Assistência de direção: Artur Abe
Elenco: Davi de Carvalho, Regina França, Rogério Freitas e Vandré Silveira
Iluminação: Wagner Antônio



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