terça-feira, 12 de setembro de 2017

Sobre a leitura de um manifesto

Acabo de ler o pequeno grande livro “Para educar crianças feministas – um manifesto”, de Chimamanda Ngozi Adichie. O texto é daqueles cuja leitura é rápida e o conteúdo transformador. Nascido a partir de uma carta que a escritora redigiu como resposta à pergunta de uma amiga de infância que, na época, desejava saber como criar sua filha recém-nascida como feminista, o livro propõe caminhos para que tentemos, através da maneira de criar nossos filhos, preparar um mundo mais justo para mulheres e homens e nos faz pensar.

A leitura me remeteu à maneira como fui criada e também ao modo como criei meu filho, hoje com quase 22 anos. Conforme lia, encontrava aquela menininha que um dia eu fui e, não poucas vezes, desejei ter ouvido algumas daquelas palavras ali escritas, para que pudesse ter enfrentado essa vida mais dona de mim e de maneira mais corajosa também. As coisas que são plantadas na cabecinha de gente em tenra idade, às vezes sutilmente, deixam uma herança que em alguns casos precisa ser resolvida no consultório de um terapeuta. Bem, aquilo que passou não tem jeito, está escrito e virou história, mas revisitar o passado sem melancolia é também processo de aprendizado. O negócio é daqui para frente e, saibam, mesmo para mim, uma mulher de 46 anos, ler certas coisas contidas no manifesto, ajudou a fortalecer a alma - a de mulher, a de mãe e a de filha também. É reconfortante e encorajador dar de cara com uma sentença como: “as pessoas vão usar a ‘tradição’ seletivamente para justificar qualquer coisa” e perceber que é a mais pura verdade e que muitas vezes isso está intrinsecamente ligado à manutenção de discriminações e injustiças. Ler o livro da nigeriana pode, mais do que ajudar a criar filhas e filhos para uma vida mais justa, ajudar a fechar velhas feridas.

A autora faz um verdadeiro carinho nas mães, sobretudo naquelas de primeira viagem, quando expõe tão claramente que criar seus próprios filhos é muito mais difícil do que palpitar na criação dos filhos dos outros, que é uma tarefa gratificante sim, mas uma realidade bastante complexa. Dessa forma, ela mesma diz que vai “tentar” criar a sua própria filha segundo as suas proposições - ela foi mãe depois de ter escrito a carta – e incentiva que as mães – citadas na figura de sua amiga – peçam ajuda, que sejam boas para elas mesmas. Lembrei-me de três casais de jovens pais que acompanho bem de pertinho e, com alegria, percebi que têm ideias semelhantes a algumas constantes do texto, na perspectiva da construção de um mundo mais equilibrado, de uma vida mais leve e de uma realidade com mais justiça.

Ver meu filho aqui em casa também me enche de contentamento. Ver o cara respeitador das individualidades alheias que ele é, é constatar que ensinar a ele sobre a diferença, sobre não atribuir valor à diferença, foi parte fundamental de seu processo educativo. É claro que também cometi erros pelo caminho, todos cometem, muita vez, falar sobre eles também é importante. O diálogo, a confiança, a disponibilidade para oferecer a linguagem ao seu filho são coisas de suma importância e Chimamanda fala sobremaneira sobre isso. Aliás, sobre a linguagem, há uma frase belíssima e que gera reflexão imediata: “a linguagem é o repositório de nossos preconceitos, de nossas crenças, de nossos pressupostos. Mas, para lhe ensinar isso, você terá de questionar sua própria linguagem.” Aí está explicitada de forma contundente a importância crucial da linguagem em nossos relacionamentos, em nossa relação com o mundo e na perpetuação ou não da transmissão de conceitos equivocados aos nossos filhos.

Sempre me debati com a palavra pãe. Jamais gostaria de receber parabéns no dia dos pais. Sempre me entendi como mãe. O abandono emocional de seu próprio pai – quer seja biológico ou adotivo - é uma ausência que uma pessoa leva para a vida toda, mesmo que busque e encontre referências em um avô, um tio ou em um amigo ou namorado de sua mãe, mesmo que supere esse trauma. Muitas pessoas podem até esquecer que ser pai é muito mais do que ser um provedor e escolherem exercer somente o segundo papel ou nem esse, mas o fato de um filho ter sua mãe ali presente o tempo todo diante dessa ausência, significa apenas que o filho tem a mãe presente, que ela é a melhor mãe que consegue ser, e não que ela esteja exercendo os dois papéis. O contrário também é absolutamente verdadeiro. Adichie exalta a relevância dos dois papéis, refuta o uso da palavra pãe, e nisso concordo em absoluto com ela.

Mais do que um roteiro para a criação de crianças feministas, o livro é uma importante reflexão sobre a importância da educação de nossas crianças para a construção de um mundo em que haja respeito à diversidade, respeito entre as relações humanas e, sobretudo, respeito ao espaço e à autenticidade de cada um no convívio social. O livro é pequeno, tem preço acessível, a linguagem é clara e objetiva, a leitura é fácil e rápida e seu conteúdo é transformador. É um livro fundamental.


CONHECENDO UM POUCO MAIS DE CHIMAMANDA ADICHIE:"O perigo de uma história única"
https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story?language=pt-br

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