domingo, 10 de setembro de 2017

Alquimia em processo

(Sobre "Processo de Conscerto do Desejo")

É escuro, surgem ruídos que não se pode identificar, há um violão e um desamparo. Só eu que sinto esse perfume espalhado pelo ar? Ela dorme. Princesa, rima ocultada, estrela atrás da nuvem. Dorme.

Foto de Fábio Seixo
A voz de Matheus ecoa ainda tímida, vem do palco e não o vemos. Aos poucos, ele desenha em tinta vocabular o início de sua história e corajosamente a divide conosco. O pranto, o dele e o nosso, é inevitável. Há uma grande vontade de abraçar o triste e solitário menino que se despe de suas feições adultas diante dos nossos olhos, ainda que estejamos todos numa penumbra incômoda. Triste, solitário, magoado e transbordando de dor, de amor, de saudade. Ela se matara, quando ele tinha apenas três meses.

O desejo de trazer Maria Cecília para a luz se cumpre. Se faz por letras, sílabas, palavras, versos inteiros, músicas e gestos, ora delicados, ora vigorosos e cheios de tenacidade. Quase um balé.

Delicadamente vão surgindo as angústias da mãe de um bebê recém-nascido que chora, mama, dorme, suja as fraldas e, vez por outra, tem essa rotina quebrada por um evento cheio de preocupação: o vômito. A maternidade em sua face nada glamorosa aparece e vem contracenar com o menino.

O texto é mais que um diálogo, uma vivência. É processo. Participamos todos da tristeza que provoca uma vida que se vai tão cedo, da falta de colo e do brinquedo colorido, da queda solitária da criança. A melancolia é irremediável, o moço essencialmente triste e com jeito de quem está querendo ser criança outra vez não a espanta dos olhares à luz. A dor é um direito, precisa ser vivida.

No tablado, a ferida é exposta com delicadeza em uma mistura terna, e áspera, e dolorida, que a ausência provoca. Ao som primoroso de violão e violino, o ator se estilhaça e se recompõe sob nossos olhares comovidos e atônitos e nos conduz, através dele mesmo, da poesia e da música, à conversão da melancolia em beleza, coisa que só pode fazer mesmo quem tem as mãos de um jardineiro quando está chovendo.

O espetáculo de Matheus Nachtergaele é poesia em movimento. É alquimia. É a transformação do sofrimento em arte. É uma flor brotada da sensibilidade e da intensidade que só tem um menino-homem que transpira amor e sorri à toa. É um convite para valsar apesar do destino, por mais duro que ele possa ser.

Processo de Conscerto do Desejo é o mais perfeito e generoso poema composto a quatro mãos por Matheus e Maria Cecília,  numa parceria imperdível. É preciso ir ver.


SOBRE O ESPETÁCULO:
Matheus Nachtergaele ficou órfão de mãe aos três meses de idade. Maria Cecília, que cometera suicídio, deixa alguns textos e poemas aos quais o ator tem acesso na adolescência, através de seu pai. Na vida adulta, na tentativa de superar a dor que o fato traz à sua vida, Nachtergaele realiza o emocionante espetáculo com os poemas de sua mãe e convida o público a participar dessa superação num sensível concerto de voz, atuação, violino e violão. A arte é o principal instrumento desse processo.


Matheus Nachtergaele declamando um dos poemas de sua mãe:
https://www.youtube.com/watch?v=D3joAP6js4E

Foto de Fabio Seixo (A quem agradeço pela autorização para o uso da imagem)
Agência O Globo - disponível em:

https://oglobo.globo.com/cultura/teatro/nachtergaele-celebra-mae-morta-quando-ele-tinha-3-meses-em-peca-17997243

Mais poesia:
(Atualização em 16.09.2017)

Concebi o espetáculo como um poema a quatro mãos: Matheus e Maria Cecília. Sendo assim, reuni aqui o belíssimo registro fotográfico da apresentação da peça em Petrópolis, a partir das lentes sensíveis e cheias de expressividade do fotógrafo Marco Oddone, e os versos de Maria Cecília Nathtergaele. Que maravilhoso concerto!







Eu procuro alguém 
Para fazer uma poesia comigo
Tem que ser terno e triste
É essencial que seja triste








Gestos de poeira
Muita saudade
Medo
Os olhos de até logo
Com jeitinho 

de adeus.







Tem que ser distraído
Sorrir à toa
Sempre querer chorar
Mas nunca conseguir







E ter amado muito
E ter sofrido
E andar de poeta 
Que fala sozinho
E falar muito 
abandonadamente










É preciso ter jeito
De quem está querendo 
Ser criança outra vez
E as mãos...
As mãos de um jardineiro
Quando está chovendo







Que nunca saiba
Como começar a falar
Mas sempre saiba 
Como começar a sorrir












Mas a maior urgência que existe
O essencial,
Muito essencial,
É ser imensamente triste.


Maria Cecília Nathtergaele






6 comentários:

  1. Minha alma cansada não faz cerimônia, vc pode entrar sem bater! Obrigado pelo olhar.....Matheus Nachtergaele.

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    1. Querido Matheus.
      Num primeiro momento fiquei em dúvida que você mesmo tivesse passado por aqui. Fiquei tão emocionada com essa possibilidade, fui correndo a sua página no facebook e encontrei meu texto lá. Que emoção! Emoção imensa por você ter percebido o carinho e a admiração enormes que seguem nesse pequeno texto sobre essa sua peça incrível. Emoção sem medida por um recado tão generoso. Obrigada pelo carinho, obrigada pela peça.
      Forte abraço.

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  2. Parabéns pelo texto Marise, sensível, intenso e convidativo.
    Cada vez mais acho que, na escrita, o seu destino é esse.
    Um beijo carinhoso e cheio de orgulho.
    Eliza

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    1. Eliza querida.
      Como disse mais cedo, seu olhar sempre me faz bem.
      Um beijo grande, terno e agradecido.

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  3. Você é incrível, minha inspiradora. Nada mais justo que receba os louros por esta arte pura da sua alma! Parabéns...amo demais! 😘

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    1. Ah, minha querida! Como é bom o seu carinho, o carinho dele, o carinho de tanta gente. Minha semana acordou inundada de afeto e deixou meu coração molinho, molinho! Encantado e agradecido. Não vejo como louros, mas como uma brisa terna que sopra e murmura: prossiga. O peito enche de energia e a vida fica mais ensolarada com esses presentes que ela nos dá. Obrigada, lindona, hoje e sempre.
      Beijos.

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