Foto: Marcos Arcoverde/Estadão |
E agora, José? O fogo queimou. O
tempo ruiu. O Museu sucumbiu. A História se foi. E agora, José? Todos sabiam.
Não havia verba. Não havia escape. Desastre anunciado. Foi um crime, José!
Crime de abandono. Crime de descaso. Crime de omissão. Crime de inércia. Crime
irreparável. Dano inestimável, José! O passado sumiu. O presente é vazio. O
futuro apagou. E você, José? Você que se abisma. Você que se dói. Você que
chora o patrimônio derramado. Você que perde a memória. Tudo virou cinzas sem que
haja a mais remota possibilidade de fênix. José, e agora?
O que dizer diante da constatação
da perda de peças tão raras? José, algumas chegaram a Terra antes de Cristo,
você sabe o que é isso, não é?! O que fazer diante das cinzas de duzentos anos de
trabalho e de dedicação de tantos estudiosos para formar o acervo perdido? Além das peças, algumas milenares, o trabalho de
cada um deles também ficou em medida muita reduzido a pó.
Um rastro de sombra paira sobre
nós. Assustam-me os nossos tempos tão cheios de destruição. Jovem ainda,
pensava no incêndio da Biblioteca de Alexandria como coisa longínqua no tempo e
no espaço, e o lamentava profundamente. Que conhecimentos estariam ali depositados, eu
sempre me perguntei. Tenho vivido coisas que pensava que eram de outro tempo,
de nunca mais. Jamais imaginei que um dia um evento desses pudesse acontecer de
novo e tão perto, e por razões de escolha, José. Sim, porque diante de tantos
alertas feitos - décadas a fio - sobre a necessidade de investimentos e de
cuidados com a instituição, não se pode duvidar que deixar aquele patrimônio
histórico à deriva foi escolha. Escolheu-se o risco de perdê-lo a tomar as
providências necessárias. Não deu outra:
ele se foi! Queimou nas labaredas da irresponsabilidade, da negligência, das
verbas desviadas de seus destinos, dos grandes acordos nacionais (que não é de
hoje que acontecem). E tudo acabou. E tudo fugiu. O sonho morreu.
O que mais precisaremos perder
para que nos encontremos, José? Perdemos todos os dias: nossos monumentos para
o descuido, nossos meninos para o tráfico, nossos trabalhadores para o tiro,
nossa saúde para as propinas, nossa cultura para o preconceito, nossa liberdade
para a falta de segurança pública, nossa dignidade para as negociatas. Perdemos
ainda muito mais que isso, José. Perdemos a nossa capacidade de nos abismar.
Essa que você ainda tem, José. Nos acostumamos à barbárie, ao grosseiro, ao funesto.
Temos vivido muitos choques, mas não damos tratos à dor. Não refletimos sobre
ela. Temos nos negado o único aspecto positivo que ela pode nos oferecer: o
crescimento. Temos escolhido não sentir. Acusar, terceirizar cem por cento das
culpas sem antes darmos aquela olhadinha básica no espelho para descobrir a
parte que nos cabe nesse latifúndio.
Pior para nós. O abismo nos espreita. Pra que tanto ódio, José?
Estamos perdidos, encegueirados
de uma cegueira que nos inviabiliza todos os demais sentidos: a cegueira
voluntária, José. Entramos num processo de autofagia e estamos devorando a nós
mesmos em batalhas estéreis nas redes sociais. Estamos presos a elas, José! E
temos repetido ininterruptamente esse processo. Diante das grandes tragédias
que têm se abatido sobre nós nos últimos tempos, num primeiro momento, abrimos
em nós uma fresta de humanidade: sentimos. Depois, ouvem-se vozes em uníssono
por um curtíssimo período de tempo, quase um átimo. Passado o susto, que cede
cada vez mais rápido, nossa fresta de humanidade não prospera. Tomamo-nos da
compulsão de julgar os que são diferentes de nós e os julgamos incansavelmente
nos tribunais histéricos e inquisitórios das redes sociais. Temos sido
mesquinhos, José. Diante do inominável, ao procurarmos apenas elementos que
comprovem nossos posicionamentos políticos e ideológicos, nos apequenamos. Almejamos ter razão e mais nada. Apontamos
culpas, não assumimos as responsabilidades devidas por nossas escolhas. Tudo é
motivo para que nos estapeemos em públicas sílabas e exclamações. Aonde nos
levará tudo isso, José?
Valter Hugo Mãe, notável escritor
português, falou sobre a notícia da destruição do Museu Histórico Nacional.
Notícia essa que qualificou de modo muito pertinente como insuportável e como
sendo da ordem do absurdo. Em sua declaração de dor, pronunciou uma sentença
que me bateu forte porque fez todo sentido pra mim: “fico com a impressão de
que o Brasil está em guerra com ele mesmo”. Eu sinto isso, José.
Que leitura é possível fazer nas entrelinhas
das cinzas dessa trágica página da História do Brasil? Há muitas leituras possíveis
e necessárias. Uma delas pode se dar logo na superfície: eleger
quem nos representa tem um custo. Somos corresponsáveis pelas ações
daqueles que elegemos, ainda que indiretamente. Temos elegido políticos e mais políticos que sequer conseguem vislumbrar o valor de um museu como o Museu Histórico Nacional. Precisamos mudar isso. Outra leitura urgente e fundamental é que há outros museus em
situação similar e que ainda há tempo para salvá-los. É preciso agir para isso.
É muito simbólico que, numa época
em que se atribui tanto valor às imagens e fotografias, da História nos restem
apenas as fotos, os flagrantes do instante. Miragens de uma matéria agora inacessível e
impalpável. É hora de aprendermos com o presente, para não comprometermos ainda
mais o futuro. Até aqui, estamos nos destruindo, José.
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Observação:
Diante da dureza dos últimos acontecimentos, fui buscar poesia, fui buscar Drummond. Especialmente o poema "José", escrito numa época de guerra e trazendo um José resiliente, que não morre e marcha, ainda que não se saiba para onde. Eu quero ter esperança, José.
Diante da dureza dos últimos acontecimentos, fui buscar poesia, fui buscar Drummond. Especialmente o poema "José", escrito numa época de guerra e trazendo um José resiliente, que não morre e marcha, ainda que não se saiba para onde. Eu quero ter esperança, José.
Até todos retomarmos a memória de nossas escolhas, dos nossos valores que nos foram passados. De valorizar o passado e não olharmos como velho que não precisa cuidado podendo ficar abandonado até sucumbir.
ResponderExcluirAté recuperamos o RESPEITO E A RESPONSABILDADE primeiro por cada um de nós para que a partir dessa apropriação possamos RESPEITAR os é o que convivemos e vivemos.
A guerra entra opiniões divergentes demonstra o adoecinto social que vivemos. A guerra entre a CULPA E a FANTASIA de um SAlVADOR DA PÁTRIA, que isenta cada cidadão da RESPONSABILIDADE.
É José tu creceste mas não aprendemos contigo
E agora Marise? Por onde no ciclo da vida recomeçaremos as escavações arqueologia de nossa história com a finalidade de ensinar a importância do passado para a construção do futuro das gerações desta Patria Amada.