Deixa. Deixa que eu me rasgue inteira e que de meus sentimentos surjam as folhas atestadas dos meus desejos. Deixa que eu me esgarce em verbos, substantivos, adjetivos e ainda mais. Deixa que eu sangre em letras, sílabas, palavras, poemas, cantigas até que se esgote em mim toda essa vontade de gritar que te quero e que me fazes querer-te. Íntimas querelas!
Deixa que o meu gozo se faça em versos. Que os espasmos sejam vírgulas, aspas, parênteses até que o ponto final seja apenas reticente. Deixa que o próximo parágrafo se construa à chegada tua. Permite que de meus desejos, dos mais secretos e lúcidos, insanos desejos lúdicos, brotem os clamores erigidos de meu ventre.
Deixa. Deixa que o sal brotado do teu corpo tempere saborosamente o meu. Enche-me de vida. Quimera?! Realidade?! Em que dimensão eu estou?! Deixa que as cabeças pensantes se preocupem em explicar. Deixa que os cérebros definam, que as inteligências espaciais possam me localizar. Eu preciso sentir. Mais que isso, eu desejo, eu quero sentir. Eu! Eu! Eu! Primeira pessoa do singular: Eu. Pronome pessoal do caso reto. Mas eu o quero muito mais do que a menor distância entre dois pontos. Eu o quero vertiginosamente sinuoso. Muito mais desafiante. Quero um eu oblíquo, mas não dissimulado. Verdadeiramente oblíquo. Como dois pólos que se atraem pelas suas diferenças.
Deixa que eu procure ardorosamente o meu querer. Flerta com a minha fêmea-feminina-dificuldade. Derruba-a. Rompe de vez minhas amarras. Liberta-me. Prova-me. Submete-me aos caprichos de felizes provações. Prova-ações. Prova as ações que desprendam das vontades mútuas e deixa que gabaritemos juntos essas compartilhadas questões.
Deixa que se mesclem as Letras e o Direito. Que se fundam e se consumem numa demanda única. Inicia um processo singular. Procede a redação de todas as pendências a fim de que escreva em nossos corpos um acordo. Prossegue com todos os pedidos. Argumenta solidamente a cada negativa. Movimenta-te com arte na retórica atuante desse texto-tabuleiro. Embarga quaisquer descontentamentos. Deixa que se cumpram os trâmites inteiros. Audiências, apelações, deferimentos até a última e derradeira instância.
Deixa que se unam as esferas de governo. Que se interpenetrem os poderes. Que o judiciário absolva, o legislativo se esqueça das regras e que o executivo tenha vontade própria. Deixa que nesse sistema haja mesmo a ditadura do respeito e que assim surjam democraticamente todas as partes constitutivas desse nosso encontro.
Deixa a Geografia sem palavras. Deixa que ela sucumba sem rumos. Cartografa mapas inteiros de realizações. Deixa que as bússolas desorientem. Que nesse rio, que não é só de janeiro, sejam descobertos santos espíritos provocadores de cumplicidade transcendente às integrais distâncias. Deixa que seja explorado todo tipo de relevo. Que nos mais áridos desertos sejam reveladas grandes bacias hidrográficas. Deixa que as variações climáticas aqueçam a totalidade de nossos corpos terrestres e que a ação dos ventos lance às correntes marítimas toda impossibilidade.
Deixa que numa parceria única nasçam canções com o lirismo de Sant´Anna e a feminilidade de Chico Buarque de Holanda, para que ao despir dos corpos se confundam pernas, braços, cheiros, bocas e línguas.
Deixa que eu perca a menina. Que eu me esvaia dessa infância recorrente. Deixa que se vá toda timidez impura. Deixa! Deixa! Deixa e, num afago, tempera o meu espírito com os teus sabores, revelando as cores dos mais essenciais quereres.
Arrebata-me com a fúria doce das tuas carícias. Aquece-me com os teus anseios avassaladores mesclando nossos corpos em suor comum. Deixa que o prazer se sagre em nós e, se quiseres, pede-me que deixe e abra em ti generoso corte para possibilidade igual.
(Marise Bender, 2004)
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