sábado, 17 de março de 2018

Carta para Marielle

Petrópolis, 16 de março de 2018.

Cara Marielle.

Foto disponível no Facebook de Marielle
Infelizmente, você nasceu na minha vida no mesmo dia em que partiu deste mundo tão complexo e  complicado em que vivemos. É verdade, eu não a conhecia e tampouco tinha ideia de seu trabalho, luta e história tão cheios de significado. Diante da repercussão de sua morte, fui procurar entender quem era você para começar a pensar com alguma lógica em quem poderia ter interesse em calar a sua voz.

Fiquei muito bem impressionada ao ir vendo o desenho de sua trajetória e também ao descobrir que você representava tudo aquilo de bom que se defende em matéria de política e de vida em sociedade: ética, respeito, liberdade, igualdade e o pleno exercício da cidadania. Adorei saber que a moça que gostava de estudar e que concluiu a faculdade na PUC Rio não veio a este mundo para brincar, ainda que de modo alegre – como relatam seus amigos - e sempre trajada com cores vibrantes, tivesse constantemente um sorriso pra distribuir. Encontrei na sua voz pensamentos bem próximos daqueles que costumo defender. Por certo, não concordamos em tudo. Temos pontos de divergência e isso é sempre bom.

Ontem, quando me aproximava da Lapa, ainda sem saber a totalidade do pouco que sei hoje a seu respeito, meu coração doeu e o choro foi inevitável. Dor e choro porque uma mulher idealista e cheia de garra havia sido morta por defender e lutar por seus sonhos e ideais. Uma moça linda, cheia de vida, que teve a rota interrompida ainda no início do caminho. Essa sensação de saída antes do tempo. Essa constatação de saída forçada e brutal. Esse confronto com a finitude planejada, com o desejo de extermínio. Tudo isso me fez/faz sangrar.

De volta a minha cidade, mais leituras sobre você, mais vídeos assistidos, mais vezes ouvindo a sua voz, a sua fala, um pouco mais de você para tentar entender o porquê de, ao que parece, quererem fazer cessar sua atividade política. Conforme os detalhes do crime iam sendo revelados, eu ia pensando no tipo de pessoa que a matou. Em seu carro havia outras pessoas além de você. Eram vidas que, pela forma com que os disparos foram efetuados, não tinham nenhuma importância para o assassino. Anderson, seu motorista, foi morto por estar na mesma linha de tiro que você e nada mais. Para o seu assassino, a morte desse homem jovem, trabalhador, pai, amigo e esposo, pode ter sido apenas um dano colateral. Tudo indica que nada foi feito para que a morte dele pudesse ser evitada. E isso me choca ainda mais. A sua não conformidade foi defender a liberdade, as minorias, os Direitos Humanos, tão fundamentais para cada um de nós. Tudo leva a crer que, para o atirador, Anderson não tinha qualquer significado, era apenas alguém que estava no caminho das balas. Como pode uma vida a mais ou a menos não importar para alguém?!

Foto de Thaís Alvarenga em 08.03.2018
O Brasil que você deixou continua a mesma praça polarizada dos últimos tempos, mas não é o mesmo. A sua morte disparou um gatilho de luta e de resistência naqueles que se negam a sucumbir ao medo. A Cinelândia foi tomada por uma manifestação pacífica e transformada num espaço para gritar o seu nome. Para convocar e proclamar a sua presença, apesar da sua morte física. O nome de Anderson também ecoou pelas ruas. Foi emocionante!

Desde quarta à noite, tem sido difícil estar nas redes sociais. Tem sido doloroso ver a dureza das palavras dirigidas a você e a seus companheiros de luta. Tem sido repugnante ver o ódio materializado nas telas. O que são as palavras se não a materialização do pensamento? E os pensamentos expressos, creia, são os piores possíveis. Parafraseando Renato Russo, nos deram o ‘face’ e vimos um Brasil/um mundo doente.

Quando o Brasil perdeu de 7 a 1 para a Alemanha e o brasileiro foi obrigado a entender que existe mais coisa aqui na terra do que o pretenso talento inigualável do jogador brasileiro de futebol, cheguei a ficar animada que o assunto central das conversas agora fosse a política. Passado algum tempo, percebi mais do que a modificação da pauta dos bate-papos. A paixão agressiva e imatura pelos clubes havia sido transferida para partidos políticos. Algumas discussões na internet lembram bastante as falas de torcedores inconsequentes que não se importam em quebrar um estádio ou um país, desde que o  time deles saia ganhando. As redes sociais, que não por acaso têm esse nome, já que são um veículo que ligam diferentes linhas que se cruzam em determinados pontos e formam um conjunto capaz de salvar, capturar ou aprisionar (uma rede serve para esses fins, não?!), foram invadidas por uma horda de torcedores de um Fla X Flu apocalíptico, em que o bom senso e o equilíbrio foram expulsos de campo. São torcedores inflamados ofendendo o oponente, fazendo apologia ao crime de morte, à lei de talião, ao quebra-mata-esfola, e berrando “morreu porque mereceu” ou um infantilizado e cruel “bem feito”. É tanta gente em algazarra pregando os absurdos mais impiedosos sem qualquer constrangimento, sem qualquer autocrítica ou autocensura, que chego a duvidar que a sociedade brasileira consiga trilhar um caminho acertado algum dia.

Que tipo de doença será que faz uma pessoa pensar em um ranking de mortos, como se houvesse um morto mais importante do que outro? Cada vida perdida é uma lástima! Estão categorizando os mortos, Marielle! E reivindicando o impossível: que todas as mortes ocorridas no Estado do Rio de Janeiro tenham a mesma visibilidade que a sua. Como se não soubessem que a maioria esmagadora de nós não teria mesmo tal visibilidade. O motivo da visibilidade no seu caso é tão óbvio que me dá um pouco de má vontade de ponderar. Basta lembrar que você ocupava um cargo que representava o voto de mais de 46.000 pessoas e que era porta-voz de uma luta inteira. As pessoas agem como se fosse a visibilidade da morte de cada um que importasse. Não é! O que importa é a morte de cada um deles! O que importa, diante da impossibilidade de que você e eles voltem à vida,  é fazer dessa sua morte um ponto de partida para que se obtenha justiça para a sua família e para as famílias dos mortos do Rio e de tantas outras localidades. É unir as lutas e não separá-las. É somar e não dividir. É lutar por uma modificação dessa justiça aí constituída (ou da falta dela), dessa segurança aí posta (ou não), dessa dura realidade que estamos enfrentando. Importa transformar essa tragédia no mote para o fim do faroeste estabelecido na capital fluminense e em tantos outros lugares Brasil afora.

Todos sabem, alguns apenas não querem admitir, que a sua morte não foi aleatória, ligada exclusivamente às questões inerentes à área de Segurança Pública do Rio de Janeiro. A principal linha de investigação da polícia, desde o primeiro momento, é de que ela tenha sido uma execução. As balas que a atingiram tinham endereço certo, queriam exterminá-la. Não foram fruto de uma tentativa de assalto mal sucedida, tampouco estavam perdidas, muito pelo contrário. Quatro balas na cabeça! Quando se morre pelas ideias que se defende, isso tem um significado ainda mais ampliado.

Tem sido muito doloroso ver junto ao seu corpo e aos corpos de tantas outras pessoas assassinadas no Rio, a esperança, a empatia, a solidariedade e, sobretudo, a humanidade em franca agonia. Os tiros são muitos, Marielle. A sociedade brasileira tem se desumanizado e isso ficou ainda mais evidente nesses últimos dias.

Para salvar nossas sensibilidades, só mesmo o alento da realização de várias vigílias em sua homenagem no Rio, no Brasil e pelo mundo. Nas vigílias eu vi abraços, eu vi choro, eu ouvi vozes fortes que gritavam que você vivia. Eu li na poesia de alguém o anúncio e o alerta de que você é semente. Foi a imagem mais bonita que pude perceber neste momento. Lembrei-me da música de Gil e foi inevitável pensar em você como um grão que nasceu trigo e morreu pão para fortalecer aqueles que trabalham na construção de um mundo mais justo, em que haja espaço para as mais diversas vozes. O poeta tem razão: você é semente e está em franca brotação. Que seu caminho aí do outro lado seja cheio de Luz, como foi o que seguiu por aqui. Você virou símbolo, moça. Morreu em março e em plena luta, ao que tudo indica, em virtude dela. Ao contrário do desejo de seus algozes, sua voz se multiplicou e ecoa ainda mais forte.

Marielle, presente!
Anderson, presente!
Hoje e sempre!


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