domingo, 11 de março de 2018

Sem mais nem porquê

Foto de Mauro Ferreira
Acordei pulsando Bethânia. Tambores e atabaques no peito e nos ouvidos vibrando acordes e versos, voz e força, reverberando o show assistido na última quarta, sob as bênçãos do Cristo Redentor. Sou toda lembranças. É que ver a palavra iluminada sobre um palco vestindo canção é algo que não acontece todo dia e nem dá pra esquecer.

Foi de Santo Amaro que essa graça nos chegou purificada em poesia e música. Baía de todos os cantos. Poema vivo e em movimento, com voz que sabe ser miúda e sabe ser forte, que sabe ser prece e ser canto. Poema-se o tempo todo em expressivas declamações. Ora, samba, saúda, louva, grita, esbraveja, canta, brinca e dança. Sorri. É toda luz. Traz em si a alegria que só têm as pessoas que fazem aquilo que amam e o fazem com gosto. Oferta ao público uma energia que só emana daqueles que têm íntima conexão com a terra, com a natureza, com o divino que habita em cada um e fora de nós. Aqueles que têm uma nítida conexão com o sublime.

Traz consigo todas as suas referências e as reverencia no altar de seu espetáculo pondo em lugar de destaque aqueles que foram e são responsáveis por ser e se tornar quem ela é. Estão ali expostas todas as tramas de seu tecido pessoal e profissional: família, amigos, amores, poetas, músicos, cantores, cantigas, lugares, leituras, vivências. Tudo posto e explícito numa natural e belíssima homenagem. A gratidão pela vida, pelas companhias e oportunidades é cristalina. Seu show é celebração.

Do recôncavo de si, transforma cantigas já consagradas nas vozes de outros intérpretes em algo particular e único, como se houvessem sido sempre e somente suas. Reinventa, aprimora, enriquece. Encanta. A voz potente povoa o ambiente de modo equilibrado e confortável, e transmuta cantiga em oração. Dialoga com seus Orixás com intimidade e confiança. Convoca e se entrega à Sagrada Família diante de nossos olhos. Maria de todos os santos rouba-nos risadas, lágrimas e suspiros tão espontâneos, que nem nos damos conta de que recônditos de nós eles nasceram. Invariavelmente nos emociona.

A bênção, Caetano, Dominguinhos, Chico Cesar, Gil, Ary Barroso, Chico Buarque. A bênção, Adriana Calcanhoto, Baden Powell, Gonzaguinha, Pessoa e tantos outros. A bênção, Vinícius de Moraes! Fomos todos abençoados com um repertório rico e envolvente. Como diria o poeta, a intérprete viajou muitas canções e percorreu muitos caminhos para nos entregar um abraço lírico, terno e melodioso.

Para encerrar, ela trouxe uma catártica declaração de amor à Cidade Maravilhosa. De uns tempos pra cá, ouvir essa canção me faz compreender ainda melhor os lindos versos do samba: “a tristeza tem sempre uma esperança de um dia não ser mais triste não”. Cantamos em oração. Com fervor, bem querer e torcida muita para que o berço do samba seja novamente coberto de felicidade. E o bis desaguou em Gonzaguinha, saudando a beleza da vida na pureza da resposta das crianças. Foi bonito! Foi bonito! E foi bonito!

Há coisas que devemos fazer uma vez na vida. Uma vez feitas, não é preciso repeti-las. E há outras, no entanto, que não se consegue entender como se viveu tanto tempo sem fazer e a vontade é repetir e repetir e repetir. Ver e ouvir de perto essa entidade nascida em solo baiano é uma delas. Remoçada, ando cantando à toa. Quero mais e ponto!


Foto de Mauro Ferreira
Observações:

- O show em questão foi realizado na Casa de Shows Vivo Rio em duas oportunidades: dias 06 e 07 de março, e teve por finalidade a gravação de um DVD. Bethânia o intitulou interinamente como "show de rua". As músicas são todas bastante conhecidas e os músicos que a acompanham possuem talento e técnica excepcionais.

- Mauro Ferreira é colunista de "O Globo" e pode ser acessado no blog especializado em música:
http://g1.globo.com/musica/blog/mauro-ferreira/


É ou não é uma força da natureza?

8 comentários:


  1. Manda pra ela esse texto!
    Simplismente... Divino!
    Eliza

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    1. Eliza querida!

      Muito obrigada! Fiquei feliz que tenha gostado. Não sei bem como fazer o texto chegar até ela, mas vou tentar.

      Beijo grande.

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  2. Marise, teu amor pela música é inspirador...

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    1. Minha querida.

      Obrigada pela leitura e pelo carinho.

      Beijo grande.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. É esta leveza que eu sinto falta,a música a poesia...

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    1. Sil querida. Que delícia ver você por aqui e saber que encontrou aquilo de que gosta: leveza, música e poesia. Que felicidade! Venha sempre! Beijo grande.

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