quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Carnaval sem máscaras: entre confetes e reflexões

Imagem disponível no Pixabay
Em casa, à tardinha, varrendo o chão, vou juntando os confetes e as ideias. A festa acabou e o fato é que aqueles pedacinhos de papel colorido que haviam sido testemunhas de parte daquilo fora o meu carnaval, deveriam ter agora outro destino. Era preciso organizar a casa, os pensamentos e as deliciosas lembranças de dias de descanso e também divertimento. Meu feriado foi de música, confetes, serpentinas, família, café, encontro com gente querida, conversas, carinho, muito riso, muita alegria. O ninho, o contentamento, as gargalhadas, a dança e a força dos laços afetivos recarregam as baterias para o enfrentamento da vida, do mundo, da realidade brasileira e até dos conflitos internos. Pelo menos do lugar de onde vejo, é assim. E ninho necessariamente não é casa, mas abrigo e acolhimento, coisas que podem se dar em qualquer espaço físico, não importa. Família para mim é, dentre uma porção de outras coisas, esse ninho nem sempre perfeito que nos dá essa força tão necessária quer seja dentro de casa ou no meio da avenida.

Como minha onda é celebrar a fantasia e não a azaração, já faz tempo que escolho um ambiente em que haja famílias inteiras e um clima de amizade celebrando o sonho, a ilusão, a beleza, o canto e o gingado como fontes de renovação, de bem-estar e movimento. Este ano não foi diferente. Nada contra desfiles de escolas de samba, blocos, grandes festas nem contra viagens e retiros também. Cada um festeja seus três dias de folguedo a seu modo e da maneira que mais o contenta. Cada um busca harmonizar-se e energizar-se do seu jeito. Ou nem busca nada disso. Carnaval também pressupõe liberdade. De pensamento, inclusive.

Gosto, gosto sim. De marchinhas, de samba, de cantoria e batucada. Gosto de dançar sorridente cantando a plenos pulmões cantigas que libertam a voz embargada de muitos dos outros 362 dias do ano. Gosto de pôr flores no cabelo e brilho no rosto. Gosto de chapéus de malando, de gravatas e de camisas listradas. Gosto de coisas que não uso habitualmente nos dias que não são de folia, especialmente daquelas que espantam a caretice e botam pra correr o meu lado mais ranzinza. Na minha vida, gosto de dar espaço à fantasia. Afinal, ela tem importante papel na preservação e na manutenção da saúde mental. Ela nos salva e nos resgata do excesso de racionalização. Tenho estado bastante inquieta e apreensiva com sociedades que têm tentado legislar sobre a ficção e cometem barbaridades na vida real. Somos feitos de realidade e de sonhos, é bom procurarmos dar vazão a ambos, do contrário corremos sério risco de adoecer.

Coisa boa é ver gente sorridente, esbanjando animação, numa saudável entrega à ludicidade. E encontrar aquela galerinha que a gente só vê no Facebook com seus amores, filhos, netos, amigos e trocar um sorriso, uma palavra, um abraço, dois beijinhos, um olá ou um tchauzinho que seja. E ir com familiares e amigos curtir um sambinha, uma canção de criança, uma coreografia. Tenho uma visão extremamente positiva do Carnaval e ela, obviamente, não tem nada a ver com os absurdos e abusos praticados em nome da "alegria". No entanto, não é todo mundo que olha para ele com olhos tão enamorados. Há os que o criticam severamente e outros que, se pudessem, o riscariam do mapa sob as mais diversas alegações, esquecendo-se de que o Carnaval é uma festa popular.

Ainda que muitos insistam em criticar a Festa de Momo e a apontem como um modo prático de alienar-se, para além dos rótulos, há o que acontece, há o que cada um faz e sente, e há a ocupação de praças, ruas e avenidas por uma massa popular que, de modo geral, não é o centro das atenções.  O centro e a periferia se misturam em escolas e cordões. Simbolicamente, o povo toma conta das cidades, promove a sua marcha e espalha seus cantos - múltiplos e plurais - aos quatro ventos.

O samba nasceu do povo e conquistou o seu lugar na base da resistência. Ele, que surgiu marginalizado, teve seu primeiro registro na Biblioteca Nacional em 27 de novembro de 1916, embora tenha havido quem fizesse samba antes dessa época, sem contudo - por temor - registrá-lo com tal sobrenome. É isso que nos relata, por exemplo, a historiadora Thaís Matarazzo numa entrevista feita à época do centenário do samba. Pelo telefone, de Donga (música) e Mauro de Almeida (letra) foi a primeira composição desse gênero musical oficialmente registrada no Brasil. E o primeiro samba a fazer sucesso.

Nesse ponto do raciocínio, lembro-me da apuração das notas obtidas pelas Escolas de Samba do Rio de Janeiro e ligo a televisão. Teve muita gente surpresa com o tom crítico dos enredos e das alegorias de Paraíso do Tuiuti, Beija-flor e Mangueira este ano. Fruto de um provável lapso de memória em relação ao papel de resistência que o samba e o próprio Carnaval sempre tiveram. Houve quem se espantasse com desfiles tão críticos e politizados na Marquês de Sapucaí. Mas isso não é exatamente novidade, que digam os ratos e urubus de 1989 (Beija-flor) e o rei dos esfarrapados, príncipe do povo de 2000 (Mangueira), não é mesmo? Vixe! Tem são Clemente cantando os Capitães do Asfalto lá em 1987. Tem muito mais! E a crítica não é prerrogativa só das escolas, um bom e atualíssimo exemplo disso é o que nos trouxe o Simpatia é quase amor.

Voltando à apuração, quando liguei a TV, já passava um tanto da metade. Fiquei animada com a Paraíso do Tuiuti aparecendo nas primeiras colocações. Achei a agremiação corajosa, visto que temia que o fato de ela não ter o que os carnavalescos chamam de uma "bandeira de peso", pudesse lhe trazer algum prejuízo.  Em primeiro, estava lá a Beija-flor, seguida da Portela. Foi a primeira vez em muitos anos que vi muita coerência entre a posição das cinco primeiras e o zumzumzum resultante dos desfiles na avenida. Não consegui deixar de acompanhar até o resultado final.

O samba que havia arrebatado meu coração verde e rosa na voz da menina Giovana Galdino foi o vencedor de 2018. Ela o tinha gravado em vídeo e feito um baita sucesso nas redes sociais. Deu Beija-flor na cabeça! Foi aquela pequena que me fez perceber toda a poesia desse enredo. Foi na voz dela que ouvi mais forte o apelo de um eu lírico menino pobre - à margem de uma sociedade que o repele como a um monstro - a uma pátria mãe e amada, mas omissa e negligente. Um menino que põe em xeque o uso da religião para fins comerciais, que denuncia o aprisionamento da liberdade, a falta de esperança do povo brasileiro e que chama a pátria a arcar com as suas responsabilidades.

A Mangueira, minha escola do coração, terminou a disputa em quinto lugar. Com uma crítica contundente ao Prefeito do Rio de Janeiro, também esteve no centro das discussões sobre o desfile das escolas do grupo especial. Entretanto, embatuquei em um dos versos da composição. Tenho restrições ao termo "sambar na cara da sociedade". Apesar de entender que significa arrasar, ter sucesso, e ter caído no gosto do povo, é uma expressão que exclui a comunidade da sociedade. Penso que precisamos compreender que somos todos parte dela e corresponsáveis por ela até no discurso. Confesso que dessa vez minha torcida foi para outras escolas, ainda que desejasse muito ver a verde e rosa entre as primeiras. E aqui paro pra pensar na postura (ou na falta dela) que tiveram o prefeito e o governador do Rio, ao virarem as costas para a população durante um evento dessa magnitude.

Paraíso do Tuiuti traz vampiro com a faixa presidencial
numa clara referência ao atual presidente brasileiro
Foto: Wilton Júnior/Estadão
É claro que sempre tem uma divergência ou outra, e que sempre vai haver aquele que ache o resultado injusto. Independente do resultado oficial, a Paraíso do Tuiuti, que ficou com o segundo lugar, foi aquela que rompeu o medo, que rompeu a barreira da segurança pública opressora, dos sprays de pimenta, dos cassetetes, das bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral, das balas de borracha, dos criminosos mascarados travestidos de manifestantes - que promovem quebra-quebra em manifestações pacíficas (comprados???) - e mostrou ao mundo - inclusive à Suíça - que o povo brasileiro não está satisfeito com a realidade que lhe está sendo imposta, tampouco de acordo com as reformas que estão sendo "propostas".

Foi ela o mais explícito marco de resistência na avenida. Ela cantou e foi  o principal quilombo do povo brasileiro no sambódromo. Ultrapassou as fronteiras das telecomunicações do país e lançou o grito do Brasil oprimido ao Planeta. O Tuiuti voou longe e bateu pra geral o sentimento de grande parte do nosso povo. E, vamos combinar que o silêncio dos apresentadores da Globo veio bem a calhar, uma vez que se pôde ver e ouvir a franca manifestação dos setores mais populares do sambódromo. O desfile da escola foi catártico. Deu voz à muita gente que queria gritar. Foi pura apoteose.

O samba deu o seu recado e cumpriu o seu papel em rede nacional. Os enredos de Beija-flor e Paraíso do Tuiuti são complementares e contíguos. Acho um tremendo tiro no pé tentar uma oposição entre essas escolas. Bola fora. Um mega gol contra. O resultado de um campeonato não pode dividir o grito uníssono das arquibancadas. O que tem valor imensurável é a denúncia, o rompimento dos meios de contenção do apelo popular. O desmascaramento da farsa de que estamos todos de acordo com as  reformas trabalhista e previdenciária (com minúsculas miudíssimas).

Findas a apuração e a limpeza da casa, dou aos confetes o destino adequado e fico aqui torcendo para que o que aconteceu na Sapucaí não tenha se acabado na quarta-feira de cinzas. Quero crer que as discussões e a queda das máscaras estejam apenas começando e que venham os melhores resultados possíveis nas eleições de 2018!




VEJA OUTRAS IMAGENS DO
DESFILE DAS ESCOLAS DE SAMBA DO RIO DE JANEIRO:


Desfile da escola Paraíso do Tuiuti repercute nas redes socias
| Foto: Mauro Pimentel / AFP / Correio do Povo



"Meu Deus! Meu Deus!
Se eu chorar, não leve a mal
Pela luz do candeeiro


Liberte o cativeiro social"

          (Paraíso do Tuiuti)










Através de Frankenstein, a Beija-flor traz a história
do menino (povo) abandonado por sua pátria
Foto: Daniel Castelo Branco - Agência O Dia


"Ganância veste terno e gravata
  Onde a Esperança sucumbiu
  Vejo a Liberdade aprisionada
  Teu livro eu não sei ler, Brasil!"
                     (Beija-Flor -2018)










"Chegou a hora de mudar
  Erguer a bandeira do samba
  Vem a luz à consciência
  Que ilumina a resistência 
  dessa gente bamba
  Pergunte aos seus ancestrais
  Dos antigos carnavais,
  nossa raça costumeira"
  (Mangueira - 2018)



Diante do descaso das autoridades,
a Mangueira faz um apelo aos céus
Foto: Fernanda Rouvenat/G1






















5 comentários:

  1. Com um carnaval nas montanhas, nada disso acompanhei. Estou "boiando" em tudo isso e confesso: estou muito bem. Gratidão por um texto "informativo" pra mim, acompanhado de uma pitada deliciosa de sábias reflexões... 😙

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  2. Obrigada, Ana!
    Te "acompanhei" pelas montanhas. As redes sociais têm isto de bom: ver a carinha de felicidade das pessoas realizando seus objetivos. Que venham trilhas e mais trilhas pra você. Beijos.😘

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  3. Excelente texto, Marise! Adorei as reflexões acerca da importância da fantasia nas nossas vidas e a necessidade de que as máscaras caiam depois do Carnaval!

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    1. Bom demais encontrar você por aqui, Flávia! Obrigada pela leitura e pelos comentários!😘

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  4. Excelente texto, Marise! Adorei as reflexões acerca da importância da fantasia nas nossas vidas e a necessidade de que as máscaras caiam depois do Carnaval!

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