quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Em cada esquina

Imagem disponível no Pixabay
Chego a casa. Ligo a TV. Assisto ao telejornal. Dentre as notícias disparadas à queima-roupa vêm o tiro, a morte, a dor: mais uma mulher assassinada por aquele que deveria ser seu companheiro, mais uma exterminada pelo ex-namorado, mais uma é perseguida e morta pelo noivo. As cenas se repetem dia após dia e os motivos, no mais das vezes, são variações sobre os mesmos - e vis - tons: ciúme, disputas de bens, não conformação com um iminente término de relação. Tapas, socos, pontapés, empurrões, tiros: mais uma família marcada pelo feminicídio. Mais uma mulher é violentamente expulsa da vida porque não se enquadra dentro dos padrões, dos desejos ou do roteiro traçado por outra pessoa.

São advogadas, corretoras, policiais, donas de casa, moradoras de rua. A violência contra a mulher não segue castas, é múltipla, plural e generalizada, ainda que não seja tão democraticamente noticiada pelos meios de comunicação. O tapa, o soco, o tiro disparado na noticia é apenas um átimo daquilo que realmente acontece em nosso país que, segundo dados da Organização Mundial de Saúde, tem a quinta maior taxa de feminicídios do mundo.

Os disparos nas notícias me atingem. Atingem cada um de nós, quer sejamos ou não conscientes disso. Atingem, machucam e ferem. Eles são a prova inequívoca de que somos parte de uma sociedade violenta e, mais que isso, é particularmente violenta em relação à mulher. Acendeu a luz vermelha: nossas mulheres – filhas, irmãs, mães, amigas, colegas, vizinhas, conhecidas – podem não estar seguras em suas casas. A violência contra a mulher parece lá, mas é aqui. Ela está muito mais perto do que se imagina e nos espreita em cada esquina. É bom que estejamos atentos.

Diante desse contexto, é doloroso constatar que, em face de um discurso social cristalizado: “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”, tanta gente se deixe em paz em relação a não denunciar casos de violência contra a mulher. E é igualmente dolorido notar que algumas dessas pessoas assépticas que não metem a colher na relação marital dos outros, vêm a público e em redes sociais meter o malho no comportamento das vítimas, num discurso que as desqualificam e culpabilizam. Culpabilizar a vítima é fortalecer o agressor. É dar poder a ele. É legitimar seu ato. É dar alimento à violência e ajudar a encorpá-la. Culpabilizar a vítima é também um modo de tornar-se violento.

Culpar pode também ser um atalho para se ver livre de ter que pensar sobre o problema. É, eu sei, este é um assunto duro e indigesto. Eu sei que é mais fácil empurrar pra lá, pra longe, pra amanhã, pra depois. É mais fácil, mas não ajuda nem resolve. O silêncio só favorece os ciclos de violência. E, vamos combinar, nenhum de nós quer viver em um mundo violento.

Sempre que paro para pensar sobre esse assunto, penso naquilo que cada um de nós pode fazer para contribuir para a mudança dessa situação. E, todas as vezes em que penso no ciclo de violência (aliás, você já leu alguma coisa sobre o ciclo da violência doméstica? É uma boa pedida para começar a entendê-la), penso que a primeira atitude que cada um de nós pode ter é o aprimoramento da escuta. Aprender a ouvir sem julgar. Em tempos de gatilhos prontos para o disparo, é bom que aprendamos a ser os ouvidos que amparam, que acreditam e dão credibilidade, que respeitam o tempo de cada um, que dão forças. Nenhuma vítima de violência precisa de dedos apontados atirando culpas sobre ela, ao contrário, necessita de mãos estendidas e ouvidos de acolher. Pode parecer pouco, mas vá por mim, para uma mulher que está sob o jugo da violência, ter apoio é fundamental. Ser ouvido atento pode ser um passo inicial para que essa mulher consiga romper o ciclo de violência.

Eu sei, muita gente pensa: “mas ela está com ele há tanto tempo, deve gostar de apanhar!” Sabe, o ser humano é um ser complexo e a mente humana não é 100% razão. Nem sempre é fácil romper com um agressor. Muitas vezes há questões emocionais e práticas que dificultam a ruptura. Isso não quer dizer que aquela que não consegue se libertar de uma relação violenta, goste de ser agredida. Muitas vezes, a vítima sente-se numa gaiola de portas até abertas, mas não tem asas para voar. Em muitos casos é preciso ajuda profissional para que as asas brotem e ela consiga alçar voo para longe da violência. Não se pode subestimar a dor de um pássaro preso, ainda que as grades sejam impalpáveis para nós e que não consigamos decifrar seu canto.

Não pense que proteger as mulheres significa perseguir os homens. Somos mulheres, filhas, mães, irmãs, amigas, colegas de homens adoráveis e que estão junto de nós nessa batalha contra a violência. Ser mãe de um rapaz fez meus poros mais abertos e expostos para constatar as feridas que um mundo machista pode causar nas almas masculinas também. Educar para o respeito e para a igualdade é parte do bálsamo que pode curar tais ferimentos. A luta não é contra os homens, é contra a violência. Um mundo que respeite as mulheres será um lugar melhor inclusive para os homens.

Eu sei que o medo de denunciar a violência tem a ver com o medo de se expor. Isso é humano e é normal. É preciso sempre tomar as precauções necessárias. Denunciar não combina com uma postura incauta. Acerque-se dos cuidados necessários e, se for preciso, meta a colher, a caneta, o telefone, o e-mail. Se for pra salvar alguém meta até o dedo na luta contra essa imensa e viva ferida social. Antes que o sangue escorra, antes que a voz se cale, antes que o luto se instale, antes que já seja depois.

(Publicado no Diário de Petrópolis em 22/08/2018)
Importante:
Aproxime-se dos diversos modos para denunciar a violência doméstica, acesse este link do Conselho Nacional de Justiça: