sábado, 29 de junho de 2024

Mais que um dia de trabalho

Foto disponível no Pixabay

De longe, o menino me olha por um bom tempo. Aos poucos, ele vem se aproximando e continua buscando meus olhos. Dou-lhe um sorriso e ele chega até a mesa em que trabalho, hoje instalada em uma calçada bem em frente a um colégio municipal.

Meu trabalho tem dessas coisas. Há dias em que estamos em calçadas, outros em praças públicas ou nos saguões de terminais rodoviários, o que nos dá uma dose salutar de realidade. A rua remove os filtros da sociedade.

Falo com as gentes e procuro olhar em seus olhos enquanto as cumprimento e ofereço exames para infecções sexualmente transmissíveis.  Brinco  com os bichos que se aproximam, às vezes tenho um biscoito para oferecer. Crianças me comovem sempre. Sobretudo aquelas com olhar de dor.

O menino me olha em silêncio. Pergunto se poderia ajudá-lo de alguma maneira. Ele me encara e me pergunta se eu tenho como lhe arranjar um dentista. Abre a boca, passa o dedo indicador sobre a gengiva  sem quatro ou cinco dentes da frente. Digo que ali não temos como resolver essa questão, mas que há um dentista no posto de saúde. Ele se afasta. Está só e se afasta sem desgrudar os olhos de mim.

Penso em várias possibilidades. Preciso dividir isso com alguém. Uma colega presencia nosso diálogo e se emociona. Eu e ela conversamos sobre o assunto. O que fazer, eu me pergunto.

O menino some de nossas vistas por um longo tempo.

Passava um pouco da hora do almoço, quando ele reaparece acompanhado de um menino um pouco menor. Trazia em uma das mãos uma pipa e os olhos fixos nos meus.

Passou na minha frente e batemos um papo. O menino agora tinha um nome e me deixou saber que o pequeno era seu irmão.

Aos 8 anos, experimentava vestir calças demasiado curtas para suas pernas, camisa rota, soltar pipa numa tarde ensolarada de sexta-feira,  deixar de ir ao colégio em que está matriculado por não ter meios de chegar até lá e baixar os olhos constrangido enquanto me contava tudo isso.

O menino menor não dividiu uma palavra. Sequer me olhou. Cabeça baixa. Olhos grudados nos próprios pés. 

A conversa terminou. O menino não arriscava dizer nada mais. Os dois se afastaram até que não mais os vi. No entanto, o que os olhos não veem, meu coração ainda sente.

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

O tempo não para


Quando a gente se dá conta de que a vida é breve, em geral, está chegando à idade madura. Na ânsia de tentar dividir essa constatação com os mais jovens, muitas vezes nos esquecemos do óbvio: cada um tem o seu 'timing' e aproveita a vida de acordo com a compreensão que dela tem no momento.

Eu, por exemplo, precisei passar dos 50 para sentir que a expressão 'o tempo voa' está muito longe de ser uma metáfora. O tempo tem asas grandes e potentes.

Notei isso de repente. A sensação que tenho é a de que uma noite dormi aos 40 e, no dia seguinte, pimba! Acordei com 5.2 e me dei conta de que, pelo menos, mais da metade do caminho já havia sido percorrida.

Na última década, o que não faltou foi coisa acontecendo o tempo todo com maior e menor intensidade comigo, com o Brasil, com a humanidade e com o planeta. Isso só faz aumentar a sensação de que vivemos em alta velocidade.

Aos 5.2, vivi para ver uma pandemia esvaziar as avenidas do mundo, a ciência  revolucionar a medicina algumas vezes e algumas guerras tornarem suspenso o sono dos inocentes.

Vivi a última década com alguma alegria e muito espanto. O correr da vida muitas vezes me pegou em cheio e o que mais cobrou de mim foi coragem. Rosa estava certo.

Vivendo em um mundo intranquilo, com a natureza cobrando a conta pela devastação sofrida nos últimos tempos, o retrocesso pairando sobre as nossas cabeças em quase todos os continentes, a fome pedindo passagem, agarro-me às simplicidades possíveis para tentar o equilíbrio num tempo que, vamos combinar, já era pra ser bem melhor.

Tudo é tempo.

Felizmente a maturidade é  algo que nos  recompensa pelo tempo passado. Amadurecer é o que torna o caminho do envelhecimento mais bonito, digno e significativo.

Às vezes penso que a pandemia tornou nossas ampulhetas particulares mais visíveis e táteis e fez brotar ao nosso redor mais e mais discursos que salientam a brevidade da vida. Sem angústia. Sem dor. Mas com o sentido de que é preciso aproveitá-la com sabedoria.

2023 acabou há pouco. Outro dia era novembro  e peguei o celular para escrever para a amiga que completava 81 anos e ela, com certa graça, sentenciou: "aquela história do parece que foi ontem é real" e completou: “se chegar aos 90, vai ter festa”. Estou convidada.

Hoje vai terminando fevereiro. O novo ano já tem dois meses. Foi-se o reveillon, passou o Carnaval. As férias estão acabando. Faltam ⅚ de 2024 para tecer a vida com trabalho, garra, poesia, esperança e amor.

Feliz Ano Novo!.

📷 Pixabay