quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Trocando as bolas

Celular, no Brasil, era bicho que estava começando a nascer e, portanto, não era difícil cometer erros ao utilizá-lo.

Foi isso o que aconteceu comigo em um dia em que fui de Petrópolis ao Rio e, lá chegando, tentei fazer uma chamada para o número de uma colega.

Ocorreu que, como havia salvado o número dela sem o DDD, a operadora ligou para o número correspondente só que com o código 21.

O que ninguém podia imaginar era que, ao fazer isso, ela modificaria meu destino me fazendo atender a ligações em série naquela tarde.

- Alô, Bia?! - perguntei certa de que estava falando com minha amiga.
- Não! Aqui não tem Bia.
- Ah! Liguei para o número errado, peço desculpas.
- Ok! Respondeu uma voz feminina e pouco simpática encerrando o telefonema.

A minha conversa com a moça do outro lado da linha era para ter terminado aí, mas "era do verbo continuou em uma outra ligação". Não satisfeita com o meu pedido de desculpas e sem crer na possibilidade de se fazer uma chamada por engano, a criatura me telefonou de volta.

- Oi! - disse ela. Olha, pode me falar a verdade, com quem você queria conversar?

De modo geral, as pessoas se referem a mim como uma pessoa paciente, nem sempre essa definição é a que está valendo no momento, mas a moça deu sorte, respondi educada e calmamente detalhando os fatos.

- Eu já disse. Queria falar com uma amiga que se chama Bia, só que o número não estava certo, fazendo questão de explicar a história da troca do DDD.

Depois disso, recebi ainda umas três chamadas do mesmo número. Achei exagerado e estranho. A essa altura com a paciência a zero grau, desliguei o aparelho.

Fiquei com a sensação de que aquela pessoa estava se sentindo enganada por um possível parceiro ou parceira. Afinal, por que tanta desconfiança de que eu quisesse falar com outra pessoa e de que todas as minhas explicações não traduziam a verdade?

Não sei precisar o que se passou com ela. Só o que posso afirmar é que recebi duas notificações de chamada daquele número quando cheguei em casa e religuei o telefone.

Para além disso, é só a constatação de que o outrora bina, hoje identificador de chamadas, nem sempre age para uma comunicação mais eficiente.

Rezem para não trocar seus contatos!

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Batendo um fio

Faz algum tempo, tenho experimentado certos receios relacionados aos avanços tecnológicos de nossos dias. Um claro exemplo desse meu desconforto é o de telefonar para as pessoas.

Sou nativa de um tempo em que a função do telefone era somente fazer e atender a chamadas. Hoje, com as múltiplas funções do aparelho, os telefonemas recebem certas censuras, como se pudessem parecer (e ser) um tanto inadequadas.

Não é raro ouvir alguém dizendo que não atende ligações de números desconhecidos. A era dos números por engano foi abolida à revelia e não está fácil pra ninguém equilibrar os pratos e se posicionar diante das novas (e cada vez mais novas) etiquetas que seguem abrindo passagem.

Aliás, ligue para um número por engano e veja o que pode acontecer. Comigo ocorreu de eu ligar para o DDD errado e a moça do outro lado da linha passar uma tarde inteira me ligando para saber o que eu queria de fato falar com ela, suplicando que eu dissesse a verdade. Minhas frases incisivas dando conta de que fora um engano, não foram suficientes para convencê-la naquele dia e quiçá até hoje.

Outro dia, depois de uns vinte áudios trocados entre mim e uma amiga, tomei fôlego e perguntei:

- Você ainda fala ao telefone?

- Como assim? Que pergunta é essa?!

- De certo modo, as pessoas têm se dividido entre aquelas que falam ao telefone e aquelas que só mandam mensagens, não parece assim pra você?

- Ah! Sim! Nesse caso, sou do tipo que ainda faz e aceita telefonemas de bom grado, respondeu ela identificando os registrando os risos na mensagem escrita.

Passei a mão no telefone, busquei o contato e realizei a chamada fora do aplicativo de mensagens.

- Oi, amiga, tudo bem? Ela me perguntou imediatamente.

Nossa! Foi só ouvir a entonação da voz dela para me sentir mais perto. Sua voz forte chegou a mim como um elixir tonificante cheio de perfume e de cor, exalando energia boa e limpa.

- Estou ótima e você?

Á conversa progrediu e lá ficamos a falar do uso dos aplicativos de mensagens e da maneira que cada um faz deles. Como de costume entre nós e nossas conversas, logo vieram outros assuntos e brotaram livres gargalhadas de nossa conversa. Batemos um bom papo em tempo real. Telefonar foi uma ótima decisão, apesar de uma quase ousadia.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Vamos celebrar o cinema brasileiro


Tenho lido muitos comentários sobre o filme "Ainda estou aqui", dirigido pelo cineasta brasileiro Walter Salles, e tenho procurado assistir às entrevistas concedidas por Selton Mello e por Fernanda Torres.


Os atores, que vivem Rubens e Eunice Paiva no longa metragem, têm tido muito a dizer sobre ele, mas também têm falado muito a respeito de suas maneiras de olhar para a vida.

Selton, sempre mais emotivo, falando sobre o Alzheimer da mãe e de Eunice, o que sempre nos põe a refletir. Fernanda visivelmente admirada com a força da mulher e da personagem que interpretou com tanta técnica e talento.

Falar sobre o filme é chover no molhado. Basta salientar que a personagem Eunice idosa e adoecida, representada por Fernanda Montenegro, é a grande porta voz do seu título, fazendo isso sem dizer uma palavra. Sim, o silêncio é também protagonista da trama, o que denota a imensa sensibilidade do diretor. No mais, é só dizer que a todos os elogios que lhe foram feitos o filme faz jus.

O que tem me importado nos últimos dias, além de me aprofundar na história, são as falas de Fernanda Torres sobre o sucesso de "Ainda estou aqui". Ela tem se mostrado uma mulher amadurecida e fascinante.

A atriz tem sentenciado abertamente: é preciso ficar feliz e orgulhoso pelo longa desde já. Há que se ter sabedoria para enxergar o valor dessa obra cinematográfica pelo que ela é, e afastar essa mania de querer um porvir incerto e alcançar essa ou aquela premiação para validar as conquistas que o cinema brasileiro já merece faz tempo.

O valor de alguma coisa é intrínseco. O que vier além disso é bônus e pode ou não chegar.

Como acontece com o cinema, esse cacoete de corrermos sempre atrás da cenoura prometida é o que muitas vezes nos impede de experienciarmos uma vitória até a última gota. Precisamos aprender com a repercussão de "Ainda estou aqui".

Um cinema que produziu "Central do Brasil", "Flores raras", "Nise: O coração da loucura" e"O filme da minha vida", para dizer o mínimo, não merece ficar à mercê de uma estatueta de ouro no final do arco-íris para poder celebrar. Como diz Fernanda Torres, já podemos abrir o champagne.

sábado, 29 de junho de 2024

Mais que um dia de trabalho

Foto disponível no Pixabay

De longe, o menino me olha por um bom tempo. Aos poucos, ele vem se aproximando e continua buscando meus olhos. Dou-lhe um sorriso e ele chega até a mesa em que trabalho, hoje instalada em uma calçada bem em frente a um colégio municipal.

Meu trabalho tem dessas coisas. Há dias em que estamos em calçadas, outros em praças públicas ou nos saguões de terminais rodoviários, o que nos dá uma dose salutar de realidade. A rua remove os filtros da sociedade.

Falo com as gentes e procuro olhar em seus olhos enquanto as cumprimento e ofereço exames para infecções sexualmente transmissíveis.  Brinco  com os bichos que se aproximam, às vezes tenho um biscoito para oferecer. Crianças me comovem sempre. Sobretudo aquelas com olhar de dor.

O menino me olha em silêncio. Pergunto se poderia ajudá-lo de alguma maneira. Ele me encara e me pergunta se eu tenho como lhe arranjar um dentista. Abre a boca, passa o dedo indicador sobre a gengiva  sem quatro ou cinco dentes da frente. Digo que ali não temos como resolver essa questão, mas que há um dentista no posto de saúde. Ele se afasta. Está só e se afasta sem desgrudar os olhos de mim.

Penso em várias possibilidades. Preciso dividir isso com alguém. Uma colega presencia nosso diálogo e se emociona. Eu e ela conversamos sobre o assunto. O que fazer, eu me pergunto.

O menino some de nossas vistas por um longo tempo.

Passava um pouco da hora do almoço, quando ele reaparece acompanhado de um menino um pouco menor. Trazia em uma das mãos uma pipa e os olhos fixos nos meus.

Passou na minha frente e batemos um papo. O menino agora tinha um nome e me deixou saber que o pequeno era seu irmão.

Aos 8 anos, experimentava vestir calças demasiado curtas para suas pernas, camisa rota, soltar pipa numa tarde ensolarada de sexta-feira,  deixar de ir ao colégio em que está matriculado por não ter meios de chegar até lá e baixar os olhos constrangido enquanto me contava tudo isso.

O menino menor não dividiu uma palavra. Sequer me olhou. Cabeça baixa. Olhos grudados nos próprios pés. 

A conversa terminou. O menino não arriscava dizer nada mais. Os dois se afastaram até que não mais os vi. No entanto, o que os olhos não veem, meu coração ainda sente.

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

O tempo não para


Quando a gente se dá conta de que a vida é breve, em geral, está chegando à idade madura. Na ânsia de tentar dividir essa constatação com os mais jovens, muitas vezes nos esquecemos do óbvio: cada um tem o seu 'timing' e aproveita a vida de acordo com a compreensão que dela tem no momento.

Eu, por exemplo, precisei passar dos 50 para sentir que a expressão 'o tempo voa' está muito longe de ser uma metáfora. O tempo tem asas grandes e potentes.

Notei isso de repente. A sensação que tenho é a de que uma noite dormi aos 40 e, no dia seguinte, pimba! Acordei com 5.2 e me dei conta de que, pelo menos, mais da metade do caminho já havia sido percorrida.

Na última década, o que não faltou foi coisa acontecendo o tempo todo com maior e menor intensidade comigo, com o Brasil, com a humanidade e com o planeta. Isso só faz aumentar a sensação de que vivemos em alta velocidade.

Aos 5.2, vivi para ver uma pandemia esvaziar as avenidas do mundo, a ciência  revolucionar a medicina algumas vezes e algumas guerras tornarem suspenso o sono dos inocentes.

Vivi a última década com alguma alegria e muito espanto. O correr da vida muitas vezes me pegou em cheio e o que mais cobrou de mim foi coragem. Rosa estava certo.

Vivendo em um mundo intranquilo, com a natureza cobrando a conta pela devastação sofrida nos últimos tempos, o retrocesso pairando sobre as nossas cabeças em quase todos os continentes, a fome pedindo passagem, agarro-me às simplicidades possíveis para tentar o equilíbrio num tempo que, vamos combinar, já era pra ser bem melhor.

Tudo é tempo.

Felizmente a maturidade é  algo que nos  recompensa pelo tempo passado. Amadurecer é o que torna o caminho do envelhecimento mais bonito, digno e significativo.

Às vezes penso que a pandemia tornou nossas ampulhetas particulares mais visíveis e táteis e fez brotar ao nosso redor mais e mais discursos que salientam a brevidade da vida. Sem angústia. Sem dor. Mas com o sentido de que é preciso aproveitá-la com sabedoria.

2023 acabou há pouco. Outro dia era novembro  e peguei o celular para escrever para a amiga que completava 81 anos e ela, com certa graça, sentenciou: "aquela história do parece que foi ontem é real" e completou: “se chegar aos 90, vai ter festa”. Estou convidada.

Hoje vai terminando fevereiro. O novo ano já tem dois meses. Foi-se o reveillon, passou o Carnaval. As férias estão acabando. Faltam ⅚ de 2024 para tecer a vida com trabalho, garra, poesia, esperança e amor.

Feliz Ano Novo!.

📷 Pixabay

segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Alvíssaras!

O Bingen é um bairro petropolitano aprazível e acaba de  receber uma notícia bastante alvissareira: ganhará uma praça. Sim, fui buscar um adjetivo lá no fundo do baú para combinar com o tempo que se espera a sua construção. Lembro-me da comunidade reivindicando esse espaço desde a infância.

Embora não pudesse começar esta crônica sem contar tal novidade, a notícia que tem feito meus olhos brilharem nos últimos dias tem nome e cor: um enorme flamboyant vermelho floresceu na localidade do 17.

Um flamboyant. Enorme. Com flores vermelhas. No 17.

Dezessete era o número dado ao ônibus que fazia a linha Bingen no século passado e que acabou por batizar o lugar em que ficava o seu ponto final.

Conquanto eu tenha contemplado as flores vermelhas desta crônica muitas vezes no trajeto entre a  casa e o trabalho, somente pude parar e  fotografá-las ontem ao final da tarde. Pra mim, que sempre gostei de fazer fotos de flores em dias azuis, o fato de fotografar quase na boca da noite teve um quê de desafio. Fiz o registro possível.

Uma árvore frondosa. Como posso não tê-la notado nos anos anteriores, não sei.  Talvez sua florada tenha sido mais explícita desta vez ou, quem sabe, seja esta a  primeira vez que floresce. O certo é que ela está lá faz tempo e agora, apesar do clima enlouquecido aqui na serra, se vestiu de flores para o Natal.

A vida, ás vezes, é feito um frondoso flamboyant. Fica bem quietinha e, sem mais nem meio mais, nos faz uma surpresa. Uma flor aqui, um amor ali, a vista de um chalezinho no topo da montanha. Até quem nasceu e foi criado no mesmo bairro e transita por ele todos os dias está sujeito a uma revelação no caminho.

E, por falar em revelação, hoje é dia de lembrar Daquela que há mais de dois mil anos se mostra e nos oferece a oportunidade de florir fraternalmente em qualquer época do ano.

Hoje é Natal. Passada toda a euforia das compras, presentes e banquetes, é dia de lembrar das propostas de um aniversariante que não quer regalos para si, mas que continua propondo o amor e a partilha como receita para um mundo melhor.

Feliz Natal!

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Das pequenas rebeldias do dia a dia

Tinha  sido um dia de extrema tensão. Estava exausta. Mas, diante do deserto instalado na geladeira e nos armários, precisava ir ao mercado.

Em geral, supermercados, lojas e afins não são de fazer minha cabeça e, se eu não estiver vestida confortavelmente então, eles constituem um verdadeiro suplício.

Bora lá procurar uma roupa confortável para ir às compras. Escolho um vestido larguinho e comprido e como, todo mundo tem direito a uma rebeldia inofensiva de vez em quando, fui de chinelo de dedo.

Só quem nasceu em Petrópolis ou mora aqui há bastante tempo sabe o que isso pode significar: uma chuva de narizes torcidos e caretas capazes de enrugar as testas mais enrijecidas de botox. Afinal, quem ousa sair com um par de havaianas numa cidade em que os sapatos do imperador eram tão ricamente bordados?

Voltemos ao mercado. Eu sei que a sociedade teve que evoluir uma enormidade para que tenhamos a nossa disposição grandes salões arejados e frescos repletos de bancas, gôndolas e prateleiras.   Tudo arrumadinho e dividido em seções nos oferecendo uma porção de coisas de que realmente precisamos e um tanto de outras que nem tanto. E, não duvidem, valorizo imensamente essa organização e essa praticidade toda.

Já tentei encarar a ida ao mercado das maneiras mais diversas para tornar o fastio que sinto em coisa melhor, mas ainda não havia tido sucesso.

Dessa vez ia ser diferente com o mercado e com os calçados. Ao invés de olhar nos olhos e receber as mais duras críticas imperiais, ia olhar para os pés à procura de alguma rebeldia que pudesse combinar com a minha.

Encontrei. Havia naquele mercado, alguns pares de pés enfiados em chinelos nem aí para o que diriam aqueles que se pusessem a julgá-los. Vibrei.

Tudo bem que eram, em sua maioria, do sexo masculino e que para os homens geralmente é mais fácil romper com esse tipo de regra social. Mas havia ali alguma insubmissão feminina também. Havia moças e mulheres andando com os pés desnudos num chinelinho de borracha sobre aquele chão de belíssimo granito. Éramos só conforto.

Os tempos estavam mudando.

E, por falar em tempo, o tempo passou que nem vi. Olhei para o carrinho de compras, tudo o que precisava já estava lá.

Passei no caixa, paguei e pensei: vim, vi e venci. Evoé! As livrarias que me esperem.

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Um beijo da vida

Nos últimos meses, tenho observando o quanto foi difícil para mim escrever durante a pandemia. Na maioria das vezes, senti, calei e guardei na memória aquelas imagens e vivências tão angustiantes de um tempo em que quase não havia certezas. Também naquele momento em que chorar parecia o óbvio, minhas lágrimas se foram. Diante do desamparo do mundo, tive  textos e lágrimas embargados em 41um recolhimento para além da proteção do corpo.

Os textos foram retornando aos poucos, mas o pranto, esse ficou contido até a última quarta.   

Nesse dia,  teve  "Som Brasil" com Milton Nascimento, Chitãozinho e Xororó apresentando o projeto "Outros cantos"  com narração, entrevista e comentários de Pedro Bial.  Em um isolamento produtivo, esse EP foi idealizado e gestado no período pandêmico e guardado até que fosse trazido à luz no encontro que gerou o programa.

O programa começa com imagens das avenidas e vias expressas vazias de medo, dúvida e precaução Brasil afora.  Lembrei-me das vias desnudas do mundo naqueles dias. Nó na garganta. Emoção. Até que, ao som d"A festa" de Bituca,  meu choro rompeu o silêncio áspero com que convivia há mais de três anos.

As lágrimas rolaram em desabafo com os potentes versos do refrão "me abraça, me aperta/me prende em tuas pernas/me prende, me força, me roda, me encanta/me enfeita num beijo", ao recordar aquele tempo em que o toque, o beijo, o abraço e a intimidade eram contraindicados pela ciência e que nós, atônitos, na contramão de nossos desejos, nos esforçávamos para cumprir as recomendações médicas.

Chorar foi o alívio de que vinha precisando há tempos. Hora de ficar sozinha entre cordas e acordes no ritmo latino e vibrante dessa canção que é pura pulsão de vida e que senti como um beijo.

Uma das expressões de Bial, logo no início da apresentação, dá conta de que a música foi um dos remédios que possibilitaram o enfrentamento e a superação daquele momento difícil. De fato foi. Quem não se lembra dos vizinhos cantando nas janelas e sacadas dos prédios na Itália ou dos shows feitos por artistas brasileiros nas varandas dos seus apartamentos? A humanidade se uniu em cantos para preservar sua existência e saúde mental.

O mundo pós-pandêmico tem sido um  desatino. Nem parece que aprendemos tanto sobre a fragilidade da vida e a necessidade protegê-la nos últimos anos. Assistir a "Outros cantos"  pode ser uma ótima opção para dar-se "um pouquinho de saúde, um descanso na loucura".  O EP é puro amor e "de amor, andamos todos precisados".

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Carpe diem

É primavera. Os agapantos vestem a cidade de flor. Os dias estão abafados e chorosos. Novembro chegou vertendo saudade. Soprando lembranças. Pressupondo recolhimento. Não o recolhimento dos que se escondem, mas daqueles que refletem sobre a vida e seus ciclos impermanentes. E o que é essa impermanência senão um imperioso mote  para que se procure vivenciar cada experiência em sua plenitude?

"Carpe diem", lembrei de um filme de 1989, "Sociedade dos poetas mortos". Se fecho os olhos,  ainda ouço Mr. Keating, o protagonista e professor de Literatura,   diante das fotos daqueles que já haviam passado pela universidade: "colha logo seus botões de rosa". "Aproveite o dia!" 

Rosa era o nome de minha avó paterna. Mulher que, com sua simplicidade, nos ensinou muito sobre a experiência de viver. Senhora de dedo verde,  cultivava agapantos um ano inteiro para homenagear os mortos da família no dia de finados. Era nossa xamã, nosso totem e pajé (descendia de índios brasileiros). Com naturalidade, cabia a ela contar as histórias de nossos antepassados e os manter vivos em nossas memórias, bem como estar sempre pronta a abençoar nossos caminhos.

De certa maneira, sermos sobreviventes da pandemia, um desencarne doloroso e  coletivo, faz de nós pessoas que sabem e que experimentaram  a brevidade e fragilidade da vida. Nossos paradigmas foram mudados. Coisas de quem sente mais do que sabe que o tempo um dia cessa.

Dia desses, no aniversário de minha prima, conversávamos sobre os legados da pandemia. Para ela, a COVID-19 veio, entre outras coisas,  mostrar precisamos valorizar aqueles que estão perto no momento. Festejar com os que estão na festa. Focar na presença e entender as ausências. Para mim, a pandemia gritou alto e bom som que precisamos cuidar de nós integralmente: mente, corpo, espírito e escolhas.

A morte/os mortos nos falam muito sobre a vida. E, como dizia Vinícius, "a vida é pra valer,  e não se engane não, tem uma só".  

É preciso honrá-la.

domingo, 22 de outubro de 2023

Rio enquadrado

“A alegria e o sofrimento deste povo é que me obrigam a trabalhar”(Heitor dos Prazeres)

Há alguns meses, desci a serra  para encontrar Heitor dos Prazeres e uma de minhas amigas no CCBB. A manhã estava nublada. Sem guarda-chuva,  acabei por tomar  inevitável (e delicioso) banho em plena Rua Primeiro de Março. Ótima desculpa para começar a visita pelo Salão de Chá da Confeitaria Colombo: um café com leite e um misto, quentes, por favor.

Mais aquecida, hora de subir as escadas e acessar a exposição. Confesso que não conhecia sequer um terço das habilidades e da multiplicidade do pintor, compositor, sambista, ogã, estilista, designer de moda, marceneiro, instrumentista, além de fundador das primeiras escolas de samba do Rio de Janeiro. Da Mangueira, inclusive. O homem era fera.

De uma lindeza sem fim! Foi minha avaliação. Ali estavam as obras e a história daquele homem, de sua religião, do tempo em que viveu, das músicas que compôs, do som que fazia, da sociedade em que ele vivia, dos trajes que confeccionou, dos móveis que planejou,  das telas que pintou. Uma curadoria primorosa  juntou um sem número de peças de coleções públicas e particulares sobre o autor.

Circulei o primeiro salão, e foi no quadro " Morro da Providência" que me dei conta de coisas  e profissões meio nostálgicas: o vendedor de sorvetes, o  moço que vendia bolas de gás, o futebol jogado pelas crianças no meio da rua.  Das jovens e das senhoras com bacias e  latas  d'água na cabeça não sinto saudade. Embora seja fácil encontrá-las próximas à Comunidade de Manguinhos. Agora com baldes de água para lavar carros.

Quando olhava as vitrines que expunham objetos e documentos pessoais do artista, pude perceber uma senhora  acompanhada por uma adolescente. Ela ia recebendo as informações ali escritas através da leitura da menina. Ela me olhou constrangida. Com cuidado,  me afastei para que elas pudessem desfrutar daquele momento que era só entre elas  e o multiartista. Há instantes que são sagrados. É preciso respeitá-los.

Reencontrei minha amiga ao final da exposição. Eu e ela sempre tivemos um acordo tácito em passeios assim: cada uma percorre o trajeto a seu tempo para depois, então, compartilhar as leituras. Saímos do CCBB para ganhar as ruas da Centro e trocar impressões.

O Rio enquadrado por Heitor tem algo de saudosismo e outro tanto de atual. Embora continue lindo,  não dá para deixar de notar que as comunidades com habitações precárias se estenderam para além da poesia e da realidade das paisagens retratadas. As pipas já não são tão inocentes. Há fome. E vendedores nos sinais, nas vias expressas, no mais das vezes, debaixo de um sol de 40 graus. A cidade vezes dói, vezes encanta.


O Rio é hoje uma adorável e complexa mistura de cores que suscita lembranças, desperta prazeres e inspira cuidados.