domingo, 27 de agosto de 2017

O filme da minha vida


Se há um programa de que gosto nessa vida é cinema. Sozinha ou acompanhada, na primeira ou na última sessão, a telona me fascina e, na imensa maioria das vezes, me proporciona uma viagem. Foi o que aconteceu vendo o novo filme de Selton Mello, livremente inspirado no livro “Um pai de cinema”, do chileno Antônio Skármeta. O longa traz uma gama de questões fundamentais abordadas de maneira cuidadosa e delicada e merece destaque também pela fotografia que revela, além de belezas naturais do sul do Brasil, um longo e trabalhoso estudo. 

Decidir nem sempre é fácil. Pode gerar arrependimentos e às vezes gera. Muitas vezes se quer mudar o presente, mas o peso do passado parece nos impedir. Muitas vezes não podemos transpô-lo sozinhos, precisamos do amor, da generosidade, do impulso e da torcida daqueles que nos têm afeto.


A história do rapaz que sente a ausência de seu pai, um homem que deixa a família e vai para a França e o aprofundamento de seus laços afetivos com a mãe, enquanto se inicia em sua profissão e descobre seu primeiro amor é envolvente e cheia de nuances para a além do drama principal.

Ali naquela poltrona de cinema, vi a vida passar diante dos olhos viajando numa locomotiva, perfeita metáfora para os caminhos que a gente segue e para tudo aquilo que pode nos tirar dos trilhos. Vezes, uma simples decisão pode ser a mudança de uma vida inteira, de um jeito de olhar a estrada, da mudança de hábitos para a aquisição de cuidados antes sequer considerados. Todo mundo tem em sua história um divisor de águas, um fato que o modificou profundamente e para a vida toda. Às vezes, numa descomprometida conversa com um maquinista, esse fato vem à tona, sobressai. A vida é mesmo diálogos e trajeto.

Sentada na poltrona do cinema, entrando e saindo daquele trem e pensando nos deslizes que têm consequências permanentes e que modificam significativamente as nossas vidas, fui me deixando encantar por Tony Terranova, por suas coragens e fraquezas. Entre uma viagem e outra, entre uma sessão de cinema e outra ali na tela, o filme foi se revelando e se tornando mais próximo.

Quem de nós não apostou na pessoa errada? Quem de nós não viu um amigo onde havia somente interesse próprio e manipulação da verdade? Quem de nós não se deixou seduzir apenas pela beleza? Quem de nós não teve na vida uma grande decepção? Decepções podem, em muita medida, ser o impulso que faltava para uma tomada de decisão, a superação necessária de um medo para a revelação de doloridas verdades. Decepcionar-se pode ser o caminho para o ponto de vista que faltava, para que se tivesse noção do todo em uma situação. Embora provoque dor e demande o esforço da recuperação, pode ser a retirada da árvore que, tombada na estrada, impede-nos de avançar.

O drama da ausência do pai. O drama da falta de uma razão, de uma explicação. O drama de saber que qualquer dúvida pode ser pior do que a mais dura certeza, uma vez que  a dúvida pode fazer paralisar, é sensivelmente retratado na tela. E porque o drama não é a única face da vida, a veia cômica surge para fazer mais leves os momentos dramáticos da caminhada. Cabem sorrisos e tristezas e revisão de posicionamentos diante dos dramas humanos apresentados.

E como é importante tentar colher a verdade na fonte e não apenas no discurso de terceiros. O controle emocional para permitir-se a descoberta é uma arte custosa, mas pode trazer benefícios àqueles que em lugar da pressa têm bons propósitos e firmes objetivos. Nada disso é fácil nem indolor, mas gera crescimento e, algumas vezes, o resgate da esperança. Nem sempre a situação é tão feia quanto se vê num primeiro olhar.

O filme fala de amor e de cobiça o tempo todo. Assim é a história, assim é a vida. O amor, sem dúvida, é a parte ensolarada do filme. E não será da vida? O despertar do bem querer e do afeto entre os jovens, a descoberta do sexo, a alegria provocada por tais revelações. Tudo é luz. Uma luz pálida e repleta de nostalgia, como convém a qualquer lembrança. Amor de pares. Amor de pai. Amor de mãe. Amor de filho. Acerto, erro,  caminhada e o contraste com um tempo que já vai longe e que também tinha hábitos nada saudáveis e que confrontam os dias atuais. Era muito cigarro, pouco cinto de segurança e nada de capacetes. Era assim mesmo. É... algumas coisas mudam para melhor.

Selton também aparece na tela e como não observar o ator talentoso, o diretor sensível e competente e o homem maduro que se tornou? Está belo e forte. Sua presença é enriquecedora e marcante, como acontece com aqueles que se encontram no auge de sua carreira.

O filme acabou. Eu e algumas outras pessoas permanecemos sentados, enquanto numa tela escura subiam letrinhas e mais letrinhas ao som de uma melíflua e apaziguadora canção francesa. Não havia pressa em deixar o cinema. Indubitavelmente tínhamos ganhado duas horas em nossas vidas.


TRAILLER OFICIAL DO FILME

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