Se há um
programa de que gosto nessa vida é cinema. Sozinha ou acompanhada, na primeira
ou na última sessão, a telona me fascina e, na imensa maioria das vezes, me
proporciona uma viagem. Foi o que aconteceu vendo o novo filme de Selton
Mello, livremente inspirado no livro “Um pai de cinema”, do chileno Antônio
Skármeta. O longa traz uma gama de questões fundamentais abordadas de maneira
cuidadosa e delicada e merece destaque também pela fotografia que revela, além
de belezas naturais do sul do Brasil, um longo e trabalhoso estudo.
Decidir nem sempre é fácil. Pode gerar arrependimentos e às vezes gera. Muitas vezes
se quer mudar o presente, mas o peso do passado parece nos impedir. Muitas
vezes não podemos transpô-lo sozinhos, precisamos do amor, da generosidade, do
impulso e da torcida daqueles que nos têm afeto.
A história do rapaz que sente a
ausência de seu pai, um homem que deixa a família e vai para a França e o
aprofundamento de seus laços afetivos com a mãe, enquanto se inicia em sua
profissão e descobre seu primeiro amor é envolvente e cheia de nuances para a
além do drama principal.
Ali naquela poltrona de cinema,
vi a vida passar diante dos olhos viajando numa locomotiva, perfeita metáfora
para os caminhos que a gente segue e para tudo aquilo que pode nos tirar dos
trilhos. Vezes, uma simples decisão pode ser a mudança de uma vida inteira, de um
jeito de olhar a estrada, da mudança de hábitos para a aquisição de cuidados
antes sequer considerados. Todo mundo tem em sua história um divisor de águas,
um fato que o modificou profundamente e para a vida toda. Às vezes, numa
descomprometida conversa com um maquinista, esse fato vem à tona, sobressai. A
vida é mesmo diálogos e trajeto.
Sentada na poltrona do cinema,
entrando e saindo daquele trem e pensando nos deslizes que têm consequências
permanentes e que modificam significativamente as nossas vidas, fui me deixando
encantar por Tony Terranova, por suas coragens e fraquezas. Entre uma viagem e
outra, entre uma sessão de cinema e outra ali na tela, o filme foi se revelando
e se tornando mais próximo.
Quem de nós não apostou na pessoa
errada? Quem de nós não viu um amigo onde havia somente interesse próprio e manipulação da verdade? Quem
de nós não se deixou seduzir apenas pela beleza? Quem de nós não teve na vida
uma grande decepção? Decepções podem, em muita medida, ser o impulso que
faltava para uma tomada de decisão, a superação necessária de um medo para a
revelação de doloridas verdades. Decepcionar-se pode ser o caminho para o ponto de
vista que faltava, para que se tivesse noção do todo em uma situação. Embora provoque dor e demande o esforço da recuperação, pode
ser a retirada da árvore que, tombada na estrada, impede-nos de avançar.
O drama da ausência do pai. O
drama da falta de uma razão, de uma explicação. O drama de saber que qualquer
dúvida pode ser pior do que a mais dura certeza, uma vez que a dúvida pode fazer paralisar, é
sensivelmente retratado na tela. E porque o drama não é a única face da vida, a
veia cômica surge para fazer mais leves os momentos dramáticos da caminhada.
Cabem sorrisos e tristezas e revisão de posicionamentos diante dos dramas
humanos apresentados.
E como é importante tentar colher
a verdade na fonte e não apenas no discurso de terceiros. O controle emocional para
permitir-se a descoberta é uma arte custosa, mas pode trazer benefícios àqueles
que em lugar da pressa têm bons propósitos e firmes objetivos. Nada disso é
fácil nem indolor, mas gera crescimento e, algumas vezes, o resgate da
esperança. Nem sempre a situação é tão feia quanto se vê num primeiro olhar.
O filme fala de amor e de cobiça o tempo todo. Assim é a história, assim é a vida. O amor, sem dúvida, é a parte
ensolarada do filme. E não será da vida? O despertar do bem querer e do afeto
entre os jovens, a descoberta do sexo, a alegria provocada por tais revelações.
Tudo é luz. Uma luz pálida e repleta de nostalgia, como convém a qualquer
lembrança. Amor de pares. Amor de pai. Amor de mãe. Amor de filho. Acerto,
erro, caminhada e o contraste com um
tempo que já vai longe e que também tinha hábitos nada saudáveis e que
confrontam os dias atuais. Era muito cigarro, pouco cinto de segurança e nada
de capacetes. Era assim mesmo. É... algumas coisas mudam para melhor.
Selton também aparece na tela e
como não observar o ator talentoso, o diretor sensível e competente e o homem
maduro que se tornou? Está belo e forte. Sua presença é enriquecedora e
marcante, como acontece com aqueles que se encontram no auge de sua carreira.
O filme acabou. Eu e algumas
outras pessoas permanecemos sentados, enquanto numa tela escura subiam letrinhas
e mais letrinhas ao som de uma melíflua e apaziguadora canção francesa. Não
havia pressa em deixar o cinema. Indubitavelmente tínhamos ganhado duas horas
em nossas vidas.
TRAILLER OFICIAL DO FILME
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