quinta-feira, 6 de setembro de 2018

E agora, José?

Foto: Marcos Arcoverde/Estadão
E agora, José? O fogo queimou. O tempo ruiu. O Museu sucumbiu. A História se foi. E agora, José? Todos sabiam. Não havia verba. Não havia escape. Desastre anunciado. Foi um crime, José! Crime de abandono. Crime de descaso. Crime de omissão. Crime de inércia. Crime irreparável. Dano inestimável, José! O passado sumiu. O presente é vazio. O futuro apagou. E você, José? Você que se abisma. Você que se dói. Você que chora o patrimônio derramado. Você que perde a memória. Tudo virou cinzas sem que haja a mais remota possibilidade de fênix. José, e agora?

O que dizer diante da constatação da perda de peças tão raras? José, algumas chegaram a Terra antes de Cristo, você sabe o que é isso, não é?! O que fazer diante das cinzas de duzentos anos de trabalho e de dedicação de tantos estudiosos para formar o acervo perdido?  Além das peças, algumas milenares, o trabalho de cada um deles também ficou em medida muita reduzido a pó.

Um rastro de sombra paira sobre nós. Assustam-me os nossos tempos tão cheios de destruição. Jovem ainda, pensava no incêndio da Biblioteca de Alexandria como coisa longínqua no tempo e no espaço, e o lamentava profundamente.  Que conhecimentos estariam ali depositados, eu sempre me perguntei. Tenho vivido coisas que pensava que eram de outro tempo, de nunca mais. Jamais imaginei que um dia um evento desses pudesse acontecer de novo e tão perto, e por razões de escolha, José. Sim, porque diante de tantos alertas feitos - décadas a fio - sobre a necessidade de investimentos e de cuidados com a instituição, não se pode duvidar que deixar aquele patrimônio histórico à deriva foi escolha. Escolheu-se o risco de perdê-lo a tomar as providências necessárias.  Não deu outra: ele se foi! Queimou nas labaredas da irresponsabilidade, da negligência, das verbas desviadas de seus destinos, dos grandes acordos nacionais (que não é de hoje que acontecem). E tudo acabou. E tudo fugiu. O sonho morreu.

O que mais precisaremos perder para que nos encontremos, José? Perdemos todos os dias: nossos monumentos para o descuido, nossos meninos para o tráfico, nossos trabalhadores para o tiro, nossa saúde para as propinas, nossa cultura para o preconceito, nossa liberdade para a falta de segurança pública, nossa dignidade para as negociatas. Perdemos ainda muito mais que isso, José. Perdemos a nossa capacidade de nos abismar. Essa que você ainda tem, José. Nos acostumamos à barbárie, ao grosseiro, ao funesto. Temos vivido muitos choques, mas não damos tratos à dor. Não refletimos sobre ela. Temos nos negado o único aspecto positivo que ela pode nos oferecer: o crescimento. Temos escolhido não sentir. Acusar, terceirizar cem por cento das culpas sem antes darmos aquela olhadinha básica no espelho para descobrir a parte que nos cabe nesse latifúndio.  Pior para nós. O abismo nos espreita. Pra que tanto ódio, José?

Estamos perdidos, encegueirados de uma cegueira que nos inviabiliza todos os demais sentidos: a cegueira voluntária, José. Entramos num processo de autofagia e estamos devorando a nós mesmos em batalhas estéreis nas redes sociais. Estamos presos a elas, José! E temos repetido ininterruptamente esse processo. Diante das grandes tragédias que têm se abatido sobre nós nos últimos tempos, num primeiro momento, abrimos em nós uma fresta de humanidade: sentimos. Depois, ouvem-se vozes em uníssono por um curtíssimo período de tempo, quase um átimo. Passado o susto, que cede cada vez mais rápido, nossa fresta de humanidade não prospera. Tomamo-nos da compulsão de julgar os que são diferentes de nós e os julgamos incansavelmente nos tribunais histéricos e inquisitórios das redes sociais. Temos sido mesquinhos, José. Diante do inominável, ao procurarmos apenas elementos que comprovem nossos posicionamentos políticos e ideológicos, nos apequenamos.  Almejamos ter razão e mais nada. Apontamos culpas, não assumimos as responsabilidades devidas por nossas escolhas. Tudo é motivo para que nos estapeemos em públicas sílabas e exclamações. Aonde nos levará tudo isso, José?

Valter Hugo Mãe, notável escritor português, falou sobre a notícia da destruição do Museu Histórico Nacional. Notícia essa que qualificou de modo muito pertinente como insuportável e como sendo da ordem do absurdo. Em sua declaração de dor, pronunciou uma sentença que me bateu forte porque fez todo sentido pra mim: “fico com a impressão de que o Brasil está em guerra com ele mesmo”. Eu sinto isso, José.

Que leitura é possível fazer nas entrelinhas das cinzas dessa trágica página da História do Brasil? Há muitas leituras possíveis e necessárias. Uma delas pode se dar logo na superfície: eleger quem nos representa tem um custo. Somos corresponsáveis pelas ações daqueles que elegemos, ainda que indiretamente. Temos elegido políticos e mais políticos que sequer conseguem vislumbrar o valor de um museu como o Museu Histórico Nacional. Precisamos mudar isso. Outra leitura urgente e fundamental é que há outros museus em situação similar e que ainda há tempo para salvá-los. É preciso agir para isso.

É muito simbólico que, numa época em que se atribui tanto valor às imagens e fotografias, da História nos restem apenas as fotos, os flagrantes do instante. Miragens de uma matéria agora inacessível e impalpável. É hora de aprendermos com o presente, para não comprometermos ainda mais o futuro. Até aqui, estamos nos destruindo, José.

José, até quando?
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Observação:
Diante da dureza dos últimos acontecimentos, fui buscar poesia, fui buscar Drummond. Especialmente o poema "José", escrito numa época de guerra e trazendo um José resiliente, que não morre e marcha, ainda que não se saiba para onde. Eu quero ter esperança, José.