segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Das coisas triviais

Manuela e Capitu
De férias em casa, querendo fazer  um agrado para as gatinhas, mudo a dieta habitual e começo o dia
oferecendo a elas uma pastinha para o desjejum, crente que estava abafando. Estava! Elas lamberam os beiços sem a menor cerimônia.

Já passado do meio dia, estava eu lavando louça, quando Manuela quebra o seu protocolo de boas maneiras e, subindo num tamborete, pousa as duas patas dianteiras sobre a borda na pia olhando ora para mim ora para o armário.

Julgando compreendê-la, dirijo-me a ela e pergunto:

- Você quer uma comida sólida?

Manu virou a cabeça e assim de lado, olhou fixo pra mim como se  protestasse:

- Oi?! Dá pra falar a minha língua?!

Constrangida com a minha falta de habilidade na escolha das palavras, tornei a perguntar:

- Quer comidinha, meu bem? 

- Miaaaau! Ela respondeu.

Peguei o pote de ração dentro do armário e já encontrando as duas gatas na beirada de suas tigelas, servi uma porção pra cada uma. Comeram com uma boca boa que só.

Voltando a guardar o pote no armário, foi inevitável pensar: os bichos sabem mesmo se comunicar, a gente é que, às vezes, escolhe mal o vocabulário.

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

A alma das coisas

Já passava da metade do mês de janeiro e ela estava lá, no canto da sala, me olhando de soslaio e me lembrando de que era extemporânea. Dizia-me insistentemente que, segundo as regras do manual do tempo certo de fazer as coisas – ele existe ainda que tacitamente – eu já estava uns doze dias atrasada e que o Ano Novo queria começar, enfim.

O Natal tinha sido pleno de leveza e carregado de felicidade, um momento alegre em um ano conturbado. De uma felicidade genuína e que realmente importa. Talvez por isso eu resistisse tanto em acomodá-la nas duas caixas que a acolhem por onze meses a cada ano.

Ela é simples. Bonita em sua simplicidade e abarrotada de significado. Lembra festa, vida, nascimento, partilha, presentes. Tem aquele quê de promessa de que no fim vencerão os bons e sublimes sentimentos, e de que há uma harmonia possível no horizonte.

Naquela manhã ela gritou mais forte. Bradou inadequação. Olhei-a atentamente e fui observando cada detalhe. Há ali muitos amigos representados nos enfeites: um anjinho aqui, uma botinha acolá, uma guirlanda. É permeada de presenças. Há de meus amigos e há de mim também. As notas musicais que a adornam são de mim. Concebo música como gênero de primeira necessidade. Não podia faltar ali. De mim também, há um Papai Noel de absoluta irreverência em short e mangas curtas e um outro pedalando uma nada convencional bicicleta. Quem sabe eles não estão ali para atenuar aquele carrancudo velhinho da minha infância, que me assustava tanto, a despeito dos presentes que trazia?

É que aquela figura parecia ter uma bola de cristal capaz de dar conta de cada uma das minhas mais graves pisadas de bola, durante o ano inteiro. Encontrar Papai Noel era fazer um flashback das malcriações e prometer que seria melhor no futuro, ainda que, em alguns aspectos, eu soubesse que isso era absolutamente impossível. Era um Papai Noel bem invocado aquele da meninice. Viajei nas lembranças.

Quando dei por mim: árvore e enfeites na caixa e uma coleção de momentos revividos ao guardar cada objeto. Percebi que cada uma daquelas coisas me fazia mais próxima de bem-quereres e afetos vários, de tesouros e bagagens muitas. Bingo! Aí está o motivo de tanta demora em desmontá-la adiando-a uma vez mais para dezembro: minha árvore contadora de histórias é amplo manifesto de sentimentos nobres. A cada natal, percebo agora, junto de mim e dos outros para compor um símbolo de apreço e amizade.

A vida tem dessas coisas, você começa a desmontar a sua Árvore de Natal e realiza uma viagem no tempo. As coisas, às vezes, têm alma. É preciso ter olhos de enxergar. Que saibamos embarcar nas boas recordações todas as vezes que elas nos tragam conforto e paz. E que estejamos sempre no presente para plantarmos e colhermos afetos no ano que nasce todos os dias.

Bem-vindo, Ano Novo!