domingo, 1 de outubro de 2023

Dois fios e um tear


O dia começou cedo, e o fim da tarde tinha endereço certo: o Arpoador. No caminho, descer a serra, metrô, Copacabana e uma cena de que jamais pude me esquecer.

Um rapaz lindo, lendo concentrado até que se abriu a porta do vagão e entrou uma senhora já com as marcas do tempo em suas mãos, segurando uma bengala e buscando o equilíbrio no meio do salão.

O jovem levantou os olhos, fechou o livro, dirigiu-se à senhora e ofereceu-lhe a sua mão e o seu lugar. Sustentou-a até que ela pudesse se sentar. Poucos notaram o pequeno diálogo e a harmonia existentes naqueles gestos.

Num sorriso, ambos se entreolharam. Ele desceu pouco depois.  Provavelmente, jamais se encontrariam novamente, mas cada um havia deixado semeada no outro sua mais terna parte.

Podia ter sido só mais um gesto, uma gentileza, uma formalidade. Não foi. Contemplar aquela cena foi notar a personificação do lado poético que cada um traz em si.  

Cada um tem em si um tanto de poesia que, em dado momento, desabrocha. Pode ser ao provar uma onda do mar. Pode ser ao sentir uma dada fragrância. Pode ser sentindo o vento passar entre os dedos da mão posta para fora da janela  do  carro na estrada. Pode ser no silêncio, sozinho, em meio à multidão ou no transporte público.

É verdade que há quem escolha cultivar a  amargura e a crueldade, eu bem sei.  Talvez esse seja o tipo de pessoa que nunca tenha acessado a poesia de si. Certamente, alguém a quem Bilac recomendaria o uso de um bom cinzel, muito tempo e muita técnica para que se aprimorasse como ser humano.

Poesia é pulso, ritmo, beleza, vida, mas não se entrega a quem a maltrate mesmo não. Foi um privilégio ver a poesia daqueles dois se mostrar bem diante de meus olhos naquele átimo de delicadeza.

Pensei no Arpoador, sorri. O sol me esperava lá fora, mas eu já tinha sido iluminada ali dentro. Afinal, não é todo dia que os fios de um poema se entrelaçam bem a nossa frente e tecem  um momento de amabilidade.

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