domingo, 22 de outubro de 2023

Rio enquadrado

“A alegria e o sofrimento deste povo é que me obrigam a trabalhar”(Heitor dos Prazeres)

Há alguns meses, desci a serra  para encontrar Heitor dos Prazeres e uma de minhas amigas no CCBB. A manhã estava nublada. Sem guarda-chuva,  acabei por tomar  inevitável (e delicioso) banho em plena Rua Primeiro de Março. Ótima desculpa para começar a visita pelo Salão de Chá da Confeitaria Colombo: um café com leite e um misto, quentes, por favor.

Mais aquecida, hora de subir as escadas e acessar a exposição. Confesso que não conhecia sequer um terço das habilidades e da multiplicidade do pintor, compositor, sambista, ogã, estilista, designer de moda, marceneiro, instrumentista, além de fundador das primeiras escolas de samba do Rio de Janeiro. Da Mangueira, inclusive. O homem era fera.

De uma lindeza sem fim! Foi minha avaliação. Ali estavam as obras e a história daquele homem, de sua religião, do tempo em que viveu, das músicas que compôs, do som que fazia, da sociedade em que ele vivia, dos trajes que confeccionou, dos móveis que planejou,  das telas que pintou. Uma curadoria primorosa  juntou um sem número de peças de coleções públicas e particulares sobre o autor.

Circulei o primeiro salão, e foi no quadro " Morro da Providência" que me dei conta de coisas  e profissões meio nostálgicas: o vendedor de sorvetes, o  moço que vendia bolas de gás, o futebol jogado pelas crianças no meio da rua.  Das jovens e das senhoras com bacias e  latas  d'água na cabeça não sinto saudade. Embora seja fácil encontrá-las próximas à Comunidade de Manguinhos. Agora com baldes de água para lavar carros.

Quando olhava as vitrines que expunham objetos e documentos pessoais do artista, pude perceber uma senhora  acompanhada por uma adolescente. Ela ia recebendo as informações ali escritas através da leitura da menina. Ela me olhou constrangida. Com cuidado,  me afastei para que elas pudessem desfrutar daquele momento que era só entre elas  e o multiartista. Há instantes que são sagrados. É preciso respeitá-los.

Reencontrei minha amiga ao final da exposição. Eu e ela sempre tivemos um acordo tácito em passeios assim: cada uma percorre o trajeto a seu tempo para depois, então, compartilhar as leituras. Saímos do CCBB para ganhar as ruas da Centro e trocar impressões.

O Rio enquadrado por Heitor tem algo de saudosismo e outro tanto de atual. Embora continue lindo,  não dá para deixar de notar que as comunidades com habitações precárias se estenderam para além da poesia e da realidade das paisagens retratadas. As pipas já não são tão inocentes. Há fome. E vendedores nos sinais, nas vias expressas, no mais das vezes, debaixo de um sol de 40 graus. A cidade vezes dói, vezes encanta.


O Rio é hoje uma adorável e complexa mistura de cores que suscita lembranças, desperta prazeres e inspira cuidados.

2 comentários:

  1. Sua crônica faz viajar, sonhar, sorrir e também se entristecer com o Rio de hoje e o de outrora. Em poucas linhas, sua transcrição é perfeita e me fez buscar ainda mais informações sobre o tão importante e não tão lembrado Heitor dos Prazeres. Que prazer de leitura!

    ResponderExcluir
  2. Que coisa boa saber disso! Heitor dos Prazeres me conquistou de vez e o Rio mora no meu coração faz tempo.

    ResponderExcluir