terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Flashback

Início de ano à vista e é hora daquela velha história de organizar a agenda. Lá está ela. Foi leal. Prestou serviços durante um ano inteiro e agora jaz obsoleta. A outra brilha intacta. E se faz sedutora, exalando seu perfume de novidade no ar. Tudo nela é branco. São trezentos e sessenta e cinco histórias para contar. Trezentos e sessenta e cinco possibilidades de um novo começo. A incerteza daquilo que vai acontecer, bem como a certeza de que virão surpresas são um excelente tempero para um prato apetitoso com sabor inconfundível de princípio.

Começo pelo fim. Encarrego-me de completar cuidadosamente os espaços destinados a endereços, telefones, correios eletrônicos. Letra "A". Inicio. Faço isso sempre a lápis, pois tudo pode mudar num clicar de mouse nesses nossos dias, do nome completo ao número do telefone, passando pelo endereço. Cada nome uma lembrança ou um brusco lapso de memória que surge do encontro de algum número de telefone anotado às pressas. Ai! Quem será essa pessoa?! Transcrevo? Não faço. Fico pensando que é possível que me lembre de quem era aquele número no exato momento em que eu mais precisar. Resolvo correr o risco.

Terminada a tarefa com os nomes, passo a um outro hábito que tenho: anotar aniversários. Vou deslizando as mãos pelas folhas da antiga companheira e recordando a escrita de um ano inteiro. Dia primeiro, nenhuma anotação especial. É estranho, sempre procuro escrever nessa data uma mensagem de otimismo, o que teria feito com que eu ignorasse esse costume? Ignoro. Vou prosseguindo entre lembranças e sorrisos até me deparar com a primeira data a registrar. Escrevo o nome e, subitamente, sou lançada  numa nuvem de recordações. Cada data uma pessoa especial. Cada pessoa um sentimento. 

Vou seguindo por esses registros e encontro uma data que já perdeu seu significado. Teve seu tempo nos trilhos da minha estrada.  Não cabe cartão de aniversário, tampouco telefonema. Já não há proximidade. Vocês já repararam como nos distanciamos de algumas pessoas com o correr dos dias? 

É curioso o quanto, ao observar uma agenda usada, se pode perceber da vida. Vezes, ficam nítidos alguns ciclos. Espaços de tempo em que as pessoas e os fatos têm maior ou menor importância na vida da gente. Donde se pode supor que tudo é mesmo uma questão de tempo, de hora, de instante, de perspectiva. Ficam tão claras as indefinições! De acordo com nossa "tábua cronológica", variam até as maneiras de enxergar um mesmo problema. Quantas vezes não nos surpreendemos com um clássico espanto: por que agi assim?! Muitas vezes esbarramos na mesma conclusão: hoje faria tudo diferente!

Prossigo. Mais um aniversário. Esse sim! Resolvo anotar em letras garrafais. Importantíssimo. O que fazia nessa data? Houve comemoração? E me delicio nas lembranças dos alegres acontecimentos de uma data especial. O bolo era Floresta Negra! Hum, eu adoro chantili! E são cores, aromas e sabores ecoando sem cessar pelo vão da memória.

Outra página. Data importante: caiu o primeiro dente de leite do meu filho. Fato de relevância incontestável! Devia ser um feriado particular na vida dele por todos os anos que se seguissem. Mãe é bicho bobo (risos)! Falando sério, é a representação da mudança. Do temporário pelo definitivo. E, aos seis anos, essa criança já começa a se vestir de definição. É tão cedo ainda! Nada deveria ser pra sempre aos seis anos de idade.

E datas, aniversários, e festas, e brigadeiros, e bolas, e comemorações, e decisões, e decepções, e conquistas... tudo resumido num revolver de páginas. Tudo representado por lógicas sequências alfabéticas. Tudo delineado por um conjunto de palavras encadeadas.

Esbarro em umas lágrimas e elas voltam vivas como se nascessem nesse instante. Quase um ano depois! Um brilho apagado, uma saudade irremediável. Alguém se foi. A dor, mais aplacada hoje do que ontem,  persiste e se transforma num aprendizado de distância.

Distâncias... efêmeras ou perenes. Se há vida, podem ser passageiras. Vai depender da habilidade e da vontade de cada um em mantê-las, encurtá-las ou mesmo eliminá-las. São desafios que podem ou ser não ser enfrentados, cabendo ao indivíduo pôr a relação numa balança e verificar se vale a pena uma reaproximação. Mas, ai! Se as separações são daquelas vivificadas pela morte, resta-nos aprender com a saudade e alimentar a esperança da eternidade.

Encontro uns planos descritos no papel.  Que felicidade! Foram totalmente realizados. Claro está que nem tudo saiu como o planejado. Voilà! Est la vie et la vie c´est  très compliquée! (espero que ainda me lembre das minhas aulas de francês). Nem tanto, nós é que fazemos questão de emaranhá-la muitas vezes.

Nessas alturas já estou pelo meio do ano. Já passaram a febril correria do carnaval, a gulosa comoção pascal, as emocionadas compras de maio e chego às flores e aos bombons de junho juntinho cartão de "Feliz Dia dos Namorados!" 

É inverno, no entanto o espirito está pra lá de aquecido. É chegado o meu momento de comemorar mais um ano de existência. Se me pego pensando nos anos que se passaram haverá para nós duas possibilidades: ou jamais chegarei ao fim desta crônica ou então acabarei escrevendo um livro de memórias, nesse caso não estou certa de que você tenha a paciência necessária para chegar ao seu fim. Optarei, em nosso benefício, por não pensar no assunto.

Sou estudante. É agosto. Recomeçam as aulas. Hora de estudar! É também hora de ceder aos apelos da mídia e sentir um desejo incontrolável de presentear o pai precisamente no segundo domingo desse mês.

Segundo semestre afora. Primavera, flores, cores, amores, dores e um bocado de rimas simples também só porque, de repente, me deu vontade de escrever desse jeito. A essa altura já registrei um tanto de nomes e aniversários que nem mencionei aqui, mas esse não vai ter jeito. Sou mãe, né?! E coruja! É a comemoração do nascimento do filhote. Como está crescido! Mais festa, bolo, parabéns e aquela coisacada toda a que se tem direito na ocasião. E seguem mais datas importantes e mais apelos comerciais para o exercício de presentear.

Outubro vem fortalecendo a certeza de ter sido agraciada. com uma verdadeira amizade. É um período de partilhas, de cumplicidade, de gargalhadas. Euzinha e Tuzinha. Amigas pra vida toda. 

Novembro. Páginas vazias. Um mal sinal. Sintoma de um leve e transitório adoecimento de alma.

Datas festivas, funestas, patrióticas e chegamos a dezembro. Aí é pura apoteose. Embora haja gritos pelo mundo inteiro ordenando: ao consumo! Há uma aura diferente que emana das pessoas. Não é regra, todavia é mais fácil encontrar sorrisos pelas ruas, receber notícias de um amigo a quem não se vê há muito tempo, de ouvir e formular um pedido de desculpas, escutar uma oração. 

Deus! Há música nas praças, nos shoppings, nas igrejas. Todos os corais afinam suas vozes para cantar glórias, alegrias, votos de felicidade. Ouça: é um solo de violino na apresentação pública da Orquestra Sinfônica Brasileira. Sublime. Harmonia de sons e movimentos. Inclinada, pende a cabeça do músico. Molemente o violinista procede o musical feitiço, que acentua-se quando o solo é  interrompido pelo vigor dos outros instrumentos. Vem, então, um  crescente de vibrações, de gestos, de sensações até que o maestro desce a batuta e finaliza o espetáculo. Êxtase! A plateia explode em aplausos.

Passou o Natal. É tempo de balanço, saldos, resultados e de esperança. Esta, sem dúvida, a minha dileta palavra dentre todas as outras que provêm desse dia 31.  Chegar ao 31 de dezembro novamente é poder sonhar com novos trezentos e sessenta e cinco dias em branco, ávidos pelo preenchimento de uma escrita feliz. Vamos a isto!

Feliz Ano Novo!








Observações:
Fazendo arrumações e balanços de fim de ano, reencontrei esse texto. Ele foi escrito em 2001 e, devo dizer, é bem curioso lembrar de um tempo que meu filho ainda era uma criança. Observar como as coisas mudaram, que minhas amizades permaneceram. Resolvi publicá-lo por conta da época e fiz pequenas modificações no original. Espero que tenham gostado.

Fontes das imagens:

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