quarta-feira, 26 de abril de 2017

O amigo partiu

Para João Carlos de  Miranda e
Rossana Rezende Rocha


É sexta, fim de noite e a notícia chega cortando o coração: o amigo partiu. Dessas partidas sem jeito e definitivas para o território das hipóteses, como salienta Monteiro Lobato. A notícia chega de repente e, por mais que a esperasse a qualquer momento, foi um choque. Diante do fato, comento com meu filho: “Ah! Eu gostava tanto dele!” A resposta que recebi me pôs a pensar sobre a vida, sobre as relações, sobre a importância ou a passagem de alguém na vida da gente: “Curioso, mãe, só me lembro de você falar dele pra mim uma vez.”

O amigo era desses, não precisava estar presente para ser querido e podia ficar anos a fio sem o menor contato. O carinho restava intacto e se fazia manifesto à primeira troca de olhares em um encontro casual.

Conheci o amigo em uma época difícil de sua vida. Dinheiro curto, incertezas na profissão, um caminho de luz a garimpar e a esperança de dias melhores brilhando no olhar. Esse era o cara. Tinha sempre uma piada, um sorriso, uma alegria pra dividir e um jeito alegre e divertido de contar os infortúnios.

A estrada iluminada foi construída em caminhada firme ao longo dos anos e no estabelecimento de parcerias no amor e na profissão, na dedicação dia após dia àquilo em que acreditava. Daqui de onde eu o via, trilhava feliz, corajoso e agradecido o seu caminho. Era uma pessoa humilde e solar, dessas que não se esquecem de onde vieram e que fazem questão de dividir o sucesso pessoal professando diariamente a simplicidade e espalhando sorrisos por onde quer que passe.

A partida de alguém jovem, no auge de sua carreira e da felicidade em seu relacionamento afetivo, sempre soa desconcertante. Parece fora do tom, um tanto desafinada, mas a vida é mesmo cheia de mistérios e não nos cabe questionar, apenas sentir.

Na vida, muitas vezes nos afastamos de pessoas queridas por motivos vários, por mudança de planos, por oportunidades de trabalho, por mudança de endereço ou por muitas outras possibilidades. Vezes ela se incumbe de dificultar o convívio e tudo bem, o afastamento é pacífico e indolor. Não há saudade, não há planos para encontros, almoços nos fins de semana, chopinho no bar, nadica de nada. A vida vem, muda a nossa realidade, segue seu curso livremente e ficamos bem com isso. O curioso é que muitas vezes o bem querer não se altera, fica latente. Foi assim com a gente.

Conversando com amigos e amigas que tinham com ele a mesma relação de respeito e admiração, proximidade quase nenhuma e afinidade muita, pude constatar que ele era assim, era seu jeito, fazia parte de sua natureza passar e marcar indelevelmente a vida dos outros, fazer-se naturalmente querido e vivo em seus corações e memórias. Era de luz, de iluminar, de repartir conhecimento e contentamento, de enxergar o milagre da vida e de viver. Isso é coisa tão sublime, tão bonita de se ver.

Em uma rede social, leio a mensagem repleta de amorosidade escrita por sua esposa, mulher que conheço e admiro, agradecendo a Deus e a ele pelo privilégio dos anos de partilha, de crescimento mútuo e do laço de amor ainda mais estreitado na vigência da doença do companheiro. Coisa mais inspiradora, no mundo das relações líquidas de que nos fala Bauman, o testemunho de uma relação sólida e feliz em que o descarte não é possível nem diante da dor ou da morte.

O amigo partiu e o que restou? Restou a certeza de que há pessoas encantadas que passam pela vida da gente e que nela, de alguma forma, se instalam por seu exemplo e pelo entusiasmo que espalham. O amigo era assim, que siga em paz e continue na eternidade sua missão de candeeiro. Por aqui fica a certeza de que tem gente que é mesmo para além das distâncias, para além do convívio diário.



Das delicadezas de Monteiro Lobato:

Arquivo pessoal - Piso da "Praça da Língua" -
Museu da Língua Portuguesa - SP





















Imagem do lírio disponível em:
https://pixabay.com/pt/l%C3%ADrio-%C3%A1gua-flor-reflex%C3%A3o-branco-2097262/


8 comentários:

  1. Somos seres humanos cheios de imperfeições, né amiga? E uma delas é o egoísmo. E só por isso não conseguimos lidar com a dor da perda de uma forma leve! A passagem de alguém querido sempre nos causa dor e solidão: de vida, de alma, de sentimentos... linda homenagem, vinda de linda pessoa especial! 😍😘😘

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    1. Oi, Ana!
      Bom dia!
      A passagem de alguém, sobretudo jovem, nos põe a pensar sobre a nossa própria existência. Mexe com a gente, expõe de maneira mais incisiva a nossa finitude. Nesse caso, o que me levou a escrever foi o fato de ele ser uma pessoa solar, dessas que modificam o ambiente onde quer que estejam. Além dessa coisa de que não é preciso estar próximo para gostar, para querer bem, para torcer e vibrar com o sucesso de alguém.
      Beijo grande, menina.
      Adorei ver você por aqui.

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  2. Amei! Faço minhas as suas palavras! Assim era o João... Solar! E muito querido, mesmo q as vezes, à distância... Bjus!

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    1. Que bom que você também se identifica, Lu!
      Bom demais ver você por aqui.
      Beijos.

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  3. Marise, pra mim, que não tive o prazer de conhecê-lo, seu texto desnudou bem quem era e o quão querido sempre será pra vocês esse peculiar amigo. A citação a Bauman diz quase tudo.
    Um abraço beeeem apertado e longo em você!

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    1. Ah, Márcio! Ele vai ser sempre lembrado e sempre muito querido. Deixou como legado o sorriso, é impossível lembrar dele sem sorrir.

      É sempre muito bom encontrar você por aqui. Recebo e retribuo o abraço beeeeeem apertado e com, pelo menos, 20 segundos, viu?! Bora produzir ocitocina.

      Beijo grande.

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  4. Marise, essa foi uma bela homenagem a uma pessoa tão querida como o João através da sua arte.
    Momento difícil para a Rossana, os filhos, a toda a família.
    E para nós, amigos, também é muito sofrida a perda de alguém que tem "missão de candeeiro"
    Só o tempo alivia a dor da saudade.
    Belas palavras.
    Bjusssss

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    1. Verdade, Inês, pra saudade só mesmo o tempo.
      Bom demais encontrar você aqui.
      Beijo grande.

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