Era uma noite de quinta. Fazia calor e o céu vestia-se de modo atraente, embora os ventos denunciassem que estava próxima uma mudança de tempo. Saímos de casa para encontrar Lima Barreto e João do Rio no Theatro D. Pedro e, devo dizer, que foi um encontro fascinante.
É verdade que Lima era já aquele, em muita medida, sequestrado pela bebida e vítima do alcoolismo e que João estava demasiadamente perturbado com os apelidos maldosos que a sociedade do início do século XX lhe impôs, ainda assim a riqueza daqueles dois sobressaía a essas tristezas que a vida às vezes decreta.
Os dois nos trouxeram generosamente um pouco de suas biografias e, em seus diálogos delirantes, nos mostraram a dor e a delícia que pode trazer a cada autor o dom para a escrita. É que essa sensibilidade tão aflorada muitas vezes fere e não são raros os exemplos daqueles que não conseguiram lidar com ela sem anestesia, ou mesmo daqueles que não conseguiram a ela sobreviver.
Em dado momento, ambos protagonizaram um julgamento que bem nos faz refletir sobre o lado cruel da sociedade em que não importa o que se diga, o que se faça, o que se apresente ou mesmo os fatos, julga do mesmo modo. Em alguns casos, a conclusão e o veredicto social é sempre o mesmo e viciado. A sociedade julga e rotula desde sempre e isso não é exatamente uma novidade. Novo é ver o processo se fazendo diante dos nossos olhos com humor e ironia.
Não se pode negar que saímos de lá meio mexidos com essa coisa inevitável que é a morte na vida da gente. Igualmente não se negará que é belo e pleno de força constatar que Lima e João estão vivos e atuais em cada um dos textos produzidos pelos autores e que seus personagens renovam suas forças.
A mim, particularmente, Lima sensibilizou mais até por confundir-se ali, bem na minha frente e de maneira tão explícita, com Policarpo. Mas foi João que conduziu muito bem o espetáculo e puxou, do fundo de nossas almas absorvidas pelo Rio de Janeiro confuso e ambíguo da Belle Epoque, um olhar humano e terno para dois autores de um tempo que parece distante, mas que, sob alguns aspectos, se repete um século depois.
Foi um encontro adorável, em uma noite de reflexões, emoção e encantamento. O Teatro tem sempre essa magia.
PS: Diários marginais – um encontro com Lima Barreto e João do Rio é uma peça teatral da Oráculo Cia de Teatro e, atualmente, vem sendo encenada, através do SESI Cultural, em diversos municípios do Rio de Janeiro, com texto e atuação de Gilson Gomes e Wagner Brandi.
Trailer da peça:
Sobre o projeto:
https://www.catarse.me/diariosmarginais
Marise querida, fiquei feliz com a crítica, adoramos o seu olhar crítico e sensível. Mais uma vez muito obrigado pela atenção.
ResponderExcluirinfelizmente não conseguimos levar nosso último espetáculo "Torturas de um coração", de Ariano Suassuna, para Petrópolis. Agora estamos nos preparando para uma nova empreitada de nos apresentarmos com um espetáculo inédito virtualmente, bem ao modo como estamos vivendo. Estão escrevendo especialmente para nós e esperamos lançá-lo em breve. Grande beijo.
Publicamos no nosso blog.Obrigado. Grande beijo!
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