Cabelos brancos. Ombros curvados. Passo feminino e lento. Pelas lentes octogenárias o mundo parece um canto simples. Rotina. Rudimentar.Trivial. Deslumbramento. Riso compreensível diante de juvenis afobações. Lugar de aprendizado é trajeto e trajeto é sempre.
Florescendo aqui em casa
O vento muda de uma hora para outra. Muda o tempo, a direção. A paisagem muda, vezes emudece, vezes soa. A vida é um tilintar de movimentos. Na roda viva até a lucidez se esvai. Vívidos delírios de amor intacto. Palpável e utópico. Namora moinhos de vento. Fiéis desejos. Partida entre nuvens confusas de parcial realidade. A vida é só momento.
Se há um
programa de que gosto nessa vida é cinema. Sozinha ou acompanhada, na primeira
ou na última sessão, a telona me fascina e, na imensa maioria das vezes, me
proporciona uma viagem. Foi o que aconteceu vendo o novo filme de Selton
Mello, livremente inspirado no livro “Um pai de cinema”, do chileno Antônio
Skármeta. O longa traz uma gama de questões fundamentais abordadas de maneira
cuidadosa e delicada e merece destaque também pela fotografia que revela, além
de belezas naturais do sul do Brasil, um longo e trabalhoso estudo.
Decidir nem sempre é fácil. Pode gerar arrependimentos e às vezes gera. Muitas vezes
se quer mudar o presente, mas o peso do passado parece nos impedir. Muitas
vezes não podemos transpô-lo sozinhos, precisamos do amor, da generosidade, do
impulso e da torcida daqueles que nos têm afeto.
A história do rapaz que sente a
ausência de seu pai, um homem que deixa a família e vai para a França e o
aprofundamento de seus laços afetivos com a mãe, enquanto se inicia em sua
profissão e descobre seu primeiro amor é envolvente e cheia de nuances para a
além do drama principal.
Ali naquela poltrona de cinema,
vi a vida passar diante dos olhos viajando numa locomotiva, perfeita metáfora
para os caminhos que a gente segue e para tudo aquilo que pode nos tirar dos
trilhos. Vezes, uma simples decisão pode ser a mudança de uma vida inteira, de um
jeito de olhar a estrada, da mudança de hábitos para a aquisição de cuidados
antes sequer considerados. Todo mundo tem em sua história um divisor de águas,
um fato que o modificou profundamente e para a vida toda. Às vezes, numa
descomprometida conversa com um maquinista, esse fato vem à tona, sobressai. A
vida é mesmo diálogos e trajeto.
Sentada na poltrona do cinema,
entrando e saindo daquele trem e pensando nos deslizes que têm consequências
permanentes e que modificam significativamente as nossas vidas, fui me deixando
encantar por Tony Terranova, por suas coragens e fraquezas. Entre uma viagem e
outra, entre uma sessão de cinema e outra ali na tela, o filme foi se revelando
e se tornando mais próximo.
Quem de nós não apostou na pessoa
errada? Quem de nós não viu um amigo onde havia somente interesse próprio e manipulação da verdade? Quem
de nós não se deixou seduzir apenas pela beleza? Quem de nós não teve na vida
uma grande decepção? Decepções podem, em muita medida, ser o impulso que
faltava para uma tomada de decisão, a superação necessária de um medo para a
revelação de doloridas verdades. Decepcionar-se pode ser o caminho para o ponto de
vista que faltava, para que se tivesse noção do todo em uma situação. Embora provoque dor e demande o esforço da recuperação, pode
ser a retirada da árvore que, tombada na estrada, impede-nos de avançar.
O drama da ausência do pai. O
drama da falta de uma razão, de uma explicação. O drama de saber que qualquer
dúvida pode ser pior do que a mais dura certeza, uma vez que a dúvida pode fazer paralisar, é
sensivelmente retratado na tela. E porque o drama não é a única face da vida, a
veia cômica surge para fazer mais leves os momentos dramáticos da caminhada.
Cabem sorrisos e tristezas e revisão de posicionamentos diante dos dramas
humanos apresentados.
E como é importante tentar colher
a verdade na fonte e não apenas no discurso de terceiros. O controle emocional para
permitir-se a descoberta é uma arte custosa, mas pode trazer benefícios àqueles
que em lugar da pressa têm bons propósitos e firmes objetivos. Nada disso é
fácil nem indolor, mas gera crescimento e, algumas vezes, o resgate da
esperança. Nem sempre a situação é tão feia quanto se vê num primeiro olhar.
O filme fala de amor e de cobiça o tempo todo. Assim é a história, assim é a vida. O amor, sem dúvida, é a parte
ensolarada do filme. E não será da vida? O despertar do bem querer e do afeto
entre os jovens, a descoberta do sexo, a alegria provocada por tais revelações.
Tudo é luz. Uma luz pálida e repleta de nostalgia, como convém a qualquer
lembrança. Amor de pares. Amor de pai. Amor de mãe. Amor de filho. Acerto,
erro, caminhada e o contraste com um
tempo que já vai longe e que também tinha hábitos nada saudáveis e que
confrontam os dias atuais. Era muito cigarro, pouco cinto de segurança e nada
de capacetes. Era assim mesmo. É... algumas coisas mudam para melhor.
Selton também aparece na tela e
como não observar o ator talentoso, o diretor sensível e competente e o homem
maduro que se tornou? Está belo e forte. Sua presença é enriquecedora e
marcante, como acontece com aqueles que se encontram no auge de sua carreira.
O filme acabou. Eu e algumas
outras pessoas permanecemos sentados, enquanto numa tela escura subiam letrinhas
e mais letrinhas ao som de uma melíflua e apaziguadora canção francesa. Não
havia pressa em deixar o cinema. Indubitavelmente tínhamos ganhado duas horas
em nossas vidas.
A arte existe porque a realidade não basta. (Ferreira Gullart)
Não é segredo pra ninguém que muitos estudiosos e escritores ressaltam o poder
da arte e da beleza, dentre outras coisas, para a promoção e a manutenção da saúde
mental e emocional daqueles que, de algum modo, a elas se entregam. A arte
salva nossas sensibilidades. Neste momento particular de dificuldade por que
todos nós passamos, acho que precisamos de terapia intensiva. Quanto mais arte
melhor. Tenho aceitado a prescrição daqueles caras. São doses de poesia,
crônica, romance, pintura, música, dança, teatro e muito mais. Além disso, muita
beleza natural, deliciosas conversas e a presença de gente cujo afeto aquece a
alma e o coração são elementos fundamentais.
Dia desses,
fui ao Theatro Dom Pedro em companhia de familiares e amigos assistir a uma
montagem de “Sonho de uma noite de verão”, de Shakespeare.
Foi verdadeiramente uma noite de sonhos. A montagem feita pela Companhia
Arteira de Nova Friburgo transportou-nos à fantasia e trouxe-nos o delicioso
contato com nossa criança interior, através da mescla entre humanos e fantoches
no palco. A perfeição dos movimentos dos bonecos, a delicadeza do cenário e da
música e uma primorosa atuação nos colocaram, por mais de uma hora, em contato
com o sublime.
Foi uma
grande sacada da trupe fazer os fantoches representarem os personagens humanos,
numa linda metáfora para a interferência dos seres élficos em seus destinos. Coube, então, aos atores a representação dos seres elementais. As
trapalhadas de Puck, numa esplêndida e envolvente atuação de Cássio Campos, levaram-nos
às gargalhadas, enquanto a riqueza musical foi, sem dúvida, uma facilitadora
para sonhássemos regidos pela maestria de Shakespeare. Antes que provássemos da
flor encantada, estávamos todos apaixonados.
Dia do espetáculo - foto da Companhia Arteira
Floresta.
Desejo. Sonho. Conflitos. Elfos. Fadas. Vaidade. Manipulação. Dúvida. Destino. Amor. Tudo ali sensivelmente
retratado numa viagem fantástica e poética para a posterior reflexão sobre os grandes
dramas da humanidade. O teatro é mesmo um espaço
privilegiado. Não raras vezes nos tira da apatia e nos põe representados no
palco ou em contato com algo que desconhecíamos em nós. Pode nos refletir por dentro e por fora, tão
necessário susto. A arte tem essa extraordinária capacidade de nos abismar,
algumas vezes de maneira muito leve e lúdica como nessa montagem. Sonhos,
gargalhadas, talento, criatividade e beleza: tudo num só espetáculo. O
teatro pode ser bálsamo para as agruras da vida e um portal escancarado para um
mundo além do físico. De fato, viver só de realidade não basta.
SOBRE O ESPETÁCULO:
Gênero: Comédia
Duração: 90 minutos
Direção: Gabriela Ribas Supervisão de direção para manipulação de bonecos: Marise Nogueira Trilha sonora original e direção musical: Diogo Rebel Elenco: Cacá Pitrez, Cássio Campos, Catherine Bom, Gabriela Ribas, Gero Band, Jerônimo Nunes, Maria José Silva, Nathália Newlands e Silvia araújo Cenografia: Silvia Araújo
Saí de casa inocentemente para
assistir a um show de Caetano Veloso. Tudo estava muito tranquilo até aquele
moço elegante trajado de azul, no mais puro estilo um banquinho e um violão,
começar a cantar. Nos primeiros acordes de Luz do sol, entrei em contato com um
tempo que passou. Parece que fiz uma conexão com a minha adolescência e com o
início da minha vida adulta, com os anos 80, com a conquista de direitos e a
valorização da vontade popular.
Adolesci num tempo de luz, de
abertura, de iluminação sobre o que tinham sido anos soturnos no Brasil. Embora
não tivesse engajamento nos movimentos que vinham lutando pelas eleições
diretas, era impossível não participar disso de alguma maneira. Os jovens e os
nem tão jovens estavam nas ruas e Coração de estudante, de Milton Nascimento,
era quase um hino. Era cantada nas escolas, nos bares, nas ruas. Tinha um ar de
acalanto, de energia, de alegria e, sobretudo, de esperança. Acompanhei a
eleição indireta, a morte de Tancredo, a inflação a galope. No meu primeiro ano
de faculdade, só se falava nas eleições diretas. Eu me lembro das campanhas eleitorais, da
desinterdição das urnas depois de tantos anos em que estiveram lacradas. Era
uma energia boa de um povo que começava a tomar as rédeas do processo
democrático de seu país novamente. Era a energia carregada da esperança de um
futuro melhor. Da construção de um país bom e justo para a juventude criar seus
filhos e a maturidade ver crescerem seus netos.
Quando houve o impeachment de
Collor de Mello, já acompanhei mais de perto. Vi brotarem os cara-pintadas aqui
e ali e se tornarem atuantes em todo o país, me recordo bem, o som das ruas era
uníssono. A grande maioria da população já não desejava aquele presidente, tinha
pesadelos com Zélia Cardoso de Mello, a ministra que, no primeiro momento do
governo, confiscou a poupança de uma parte significativa da população
brasileira. Não foram só aqueles que tinham alguma reserva que ficaram com suas
contas bloqueadas. Houve gente que tinha vendido um imóvel para comprar outro, por exemplo, e
que diante do confisco ficou sem ter onde morar. Houve dor, houve suicídios, a
coisa não foi brincadeira. Quando o presidente foi deposto, havia o sentimento
da maioria de que isso havia sido justo.
Desse modo, tudo o que vivi na
adolescência e juventude foi uma escalada ascendente de liberdade e de
conquistas. Minha geração aprendeu a encher o peito e a boca e sacar as leis
afirmando que tinha direitos. Eu acreditei. Cresci nessa onda e na ilusão de
que os direitos, uma vez conquistados, estavam garantidos, que era pra frente
que se andava, que havia direitos adquiridos. Sendo assim, os recentes
acontecimentos no Brasil têm sido, mais do que um soco no estômago (ou muitos
socos, sinto-me golpeada todos os dias), um momento de reflexão e da
constatação de que direitos são apenas circunstanciais e que, para a sua
manutenção, temos que cuidar deles o tempo todo. Do contrário, de um minuto
para o outro, entre acordos e conluios, se esvaem e todos perdem.
Tá certo, a gente vê aqui e ali
mundo afora as ameaças à democracia diante de nós na TV, direitos ruindo nos mais diversos lugares, mas a televisão é tão
asséptica que tem qualquer coisa de ficção, de distanciamento, de nos informar
como se estivéssemos todos longe daquele ponto. A TV nos ilude e nos adormece
todos os dias. Se não fosse assim, como seria possível ter um aparelho desses
na sala de jantar? Como comer diante das notícias e imagens de guerras e de mutilações?
Eu acompanhava as democracias ameaçadas a distância, mas não via o risco aqui
tão perto.
A realidade começou, nesse
sentido, a me dar uns solavancos quando, logo depois da apuração dos votos nas
eleições para presidente em 2014, alguns inconformados com o resultado das
urnas começaram a pedir o impeachment da presidente eleita e tais protestos
começaram a ganhar força com a participação de alguns políticos brasileiros. A
oposição naquele momento começava a mostrar a sua face predadora em prol de um
resultado e em detrimento da valorização da nação brasileira e do processo
democrático, fomentando a divisão nascida na disputa eleitoral.
Quando Trump venceu as eleições
dos EUA eu tive muita inveja dos americanos, muita. Não desse inacreditável resultado.Tive inveja da postura
responsável de sua oposição. Da fala de Hillary Clinton que, diante da derrota,
que nem ocorreu nas urnas, não perdeu a clareza de que o país era maior que seu
umbigo e, portanto, conclamou os americanos à união pelo crescimento de todos.
No Brasil, apesar do discurso do candidato derrotado nas urnas, não tivemos uma
oposição responsável. Faltou à oposição, desde as últimas eleições, a grandeza de perceber
o Brasil como um país. Ao contrário disso, o que houve foi o estímulo
irresponsável e em causa própria para que seus eleitores fossem às ruas pedir o
impeachment de uma presidente democraticamente eleita, no momento seguinte ao
resultado do pleito. Faz parte do processo democrático aprender a perder. Há
que se ter grandeza para continuar lutando por seus objetivos sem sabotar o
processo legítimo das urnas.
A oposição sabotou o quanto pôde
um governo legítimo. Foram pautas e mais pautas travadas no Congresso Nacional
para levar o governo ao insucesso. O país ficou ingovernável. A crise econômica
foi agravada. Um presidente, haja vista os “acordos e mais acordos” que têm
sido feitos pelo presidente Temer, não pode governar sozinho. Mais tarde,
diante das gravações apresentadas pela Operação Lava Jato, ficou claro nos
diálogos de Sérgio Machado com Romero Jucá, que o medo, o pavor era de que aquela
operação levasse boa parte deles ao naufrágio de suas carreiras políticas
construídas nem sempre na legalidade. Desse modo, foram articuladas alianças e
mais alianças para que salvassem a própria pele. O que fez a oposição nesse
tempo todo? É como se ela, como dizem, tivesse descarrilhado o trem para depois
“salvar” os feridos. Houve vítimas fatais? Para vítimas fatais cuidados médicos
não resolvem coisa alguma. A oposição estimulou e promoveu o impeachment a um preço
altíssimo para salvar sua própria pele. Sem falar naqueles que mudaram de lado
pelo mesmo motivo.
Para agravar a crise vivida pelo
governo Dilma naquela ocasião, faltou sensibilidade ao referido governo para
lidar com uma parcela significativa da população que não o apoiava e que foi às
ruas se manifestar. As medidas tomadas
pelo governo estabelecido ajudaram a pôr gasolina no fogo e a incendiar as
possibilidades de reversão daquela situação. Àquela altura os movimentos já
tinham certa autonomia e repudiavam alguns dos políticos que o incentivaram,
chamando-os, inclusive, de oportunistas. Havia muitos manifestantes que defendiam
a não participação de políticos naqueles protestos. Os movimentos, naquele
momento, já tinham em grande parte outra identidade. No domingo anterior à
nomeação de Lula como Ministro da Casa Civil, os movimentos de rua tinham
levado três milhões de pessoas às ruas num protesto contra o governo e contra a
possível nomeação do ex-presidente para um cargo ministerial. Não se ignora a
voz de três milhões de pessoas impunemente. A nomeação dele para a casa civil
soou, até para muitos que apoiavam o governo, como um desrespeito às vozes de
uma parte significativa da população. Ao ignorar o movimento, o governo ajudou
a jogar uma pá de cal sobre as possibilidades de superação da crise política em
que se encontrava.
A realidade me esbofeteou pra
valer mesmo naquela sessão de domingo da Câmara de Deputados que aprovou o
prosseguimento do processo de impeachment da presidente. Olhava incrédula para
a postura e ficava atônita com as falas de grande parte daqueles parlamentares.
Pensava na gravidade do que aquilo significava para além daquele resultado, para
o fato de que aqueles senhores e aquelas senhoras ocupavam cargos
representativos e, portanto, representavam uma parcela da população. Suas
condutas questionáveis naquele dia e nos dias que se seguiram àquela sessão
colocavam em xeque o nosso congresso. Ética?! Decoro?! Nada disso parecia
existir por ali. Passei, a partir daí, a olhar com mais atenção o número
expressivo e crescente de votos em branco e nulos , bem como o enorme número de
abstenções nos processos eleitorais para os mais diversos cargos políticos de
nosso país. Nosso sistema eleitoral desconsidera esses números para os
resultados, no entanto, diante do quantitativo de pessoas que representam,
devíamos repensá-lo. Não basta criticar os que agem assim, tampouco rotulá-los
de isentões. Tais votos também manifestam uma mensagem, a de que aqueles
eleitores não concordam que nenhum dos candidatos inscritos os representem e
isso é coisa à beça. Para muitos, deixar
de votar é uma decisão amadurecida e demasiadamente difícil. Jamais votei nulo
ou em branco nem me abstive das votações, mas entendo quem o faz. É preciso
pensar nisso com a seriedade que o assunto merece.
Depois de passar pela Câmara dos Deputados,
o Senado brasileiro aprovou o impeachment, que
se consolidou como um golpe quando, dois dias depois de ser votado, o mesmo Senado sancionou uma lei que flexibilizava
as regras para a abertura dos créditos suplementares sem a necessidade de
autorização pelo Congresso Nacional. A partir daquela data, então, estavam
legalizadas as “pedaladas fiscais”, que foram o principal argumento para o
pedido do impeachment presidencial. Ou seja, depuseram a presidente por uma
ilegalidade que dois dias depois avaliaram como legal. Deram nó em pingo de
éter bem na nossa frente. Ao contrário do que ocorrera no impeachment de
Collor, a voz das ruas não era uníssona. Novamente havia sido desconsiderada
uma parte significativa da população.
Pouco mais de um ano do ocorrido,
o que temos visto é de abalar as estruturas das nossas esperanças. Temos um
presidente que foi gravado em uma conversa comprometedora com o empresário e
delator Joesley Batista em que, o mínimo
que se pode pensar, é que o presidente tenha prevaricado. Acusado pela
Procuradoria Geral da União de crime de corrupção passiva, esse mesmo
presidente, ao invés de tomar atitudes coerentes com a lisura e a transparência
que o exercício de sua função exigem, toma providências no sentido de
dificultar a visão da entrada do Palácio do Jaburu e estabelece o uso de
mecanismos para dificultar a gravação de suas conversas, como é o caso da
instalação do misturador de vozes. Coisa
que mais se aproxima de uma confissão de culpa do que do desejo de provar que
não a tem. Sua manutenção na presidência tem se dado por manobras e mais
manobras políticas que, se não forem ilegais, certamente são imorais. A crise
econômica e financeira continua instalada. Houve perdas de direitos
trabalhistas. Universidades públicas agonizando. O aumento do número de pessoas em situação de rua é visível. O
aumento da violência e da criminalidade é sentido pela população até fora dos
grandes centros. E ninguém se manifesta. Bem, isso é o que dizem. Tenho visto, pelo
país afora, gritos e mais gritos de “Fora, Temer!” E esse coro está crescendo. Basta
que haja uma reunião para que tal apelo surja naturalmente. Se os gritos não
ganharam as ruas, não quer dizer que eles não existam, é importante que isso
fique claro.
Por que os gritos não ganham as
ruas? Há vários motivos, mas sobre dois deles eu gostaria de falar. Temos sido sistematicamente expostos ao medo.
Medo de que a economia desande e que o país vá à bancarrota, como se o desacerto
no campo econômico não estivesse intimamente ligado aos inúmeros processos de
gestão fraudulenta, de rios e rios de propina de que nos dá conta o Ministério
Público. É como se falassem para nós que os gestores não têm culpa, mas nós
podemos pôr o país a perder por querer que o presidente responda o processo por
corrupção passiva no Supremo Tribunal Federal. Há uma espécie de ameaça de que
teremos responsabilidade pelo fracasso da economia se houver uma mudança. “Ruim
com ele, pior sem ele”, nos avisam alguns a todo o tempo. Além disso, a pós-verdade,
sem entrarmos na discussão filosófica se está sendo usada no sentido real ou
equivocado do termo, mas pensando no significado que tem assumido no contexto atual,
tem ajudado a nos confundir, valorizando mais a versão do fato do que o fato
ocorrido em si. Dando mais crédito à versão do fato do que a verdade em si. Os
discursos de alguns políticos são completa e propositada distorção dos fatos. Precisamos
estar atentos a isso. Temos o dever cívico
de não nos deixar enganar. Concordar que um presidente não seja julgado por um
crime do qual se tem provas é o mesmo que assegurar para toda a classe política
que a lei não pode atingi-los. É
endossar a impunidade. A população não
foi para a rua? Há muitos meios de se manifestar, ir às ruas não é o único. É
fundamental fazer uso deles.
E o que tem Caetano a ver com
tudo isso? Passei boa parte da vida adulta vendo uma escalada crescente de
conquistas e direitos, tenho estado dolorida vendo essas conquistas descendo
ladeira a baixo. Constatar toda a fragilidade desses direitos tem sido um duro
aprendizado. Olhar Caetano ali no palco, desfilando sua poesia ante meus olhos,
lembrar que ele foi um preso político, que foi exilado; ouvir canções compostas
em 1968; constatar as letras vivas e mordazes de algumas de suas canções e não
pensar na situação atual do país, no estado de coisas que estamos vivendo, no
avizinhamento de um tempo ainda mais sombrio é simplesmente impossível. É inevitável linkar o Brasil atual aos podres poderes de Caetano. Naquele
show, a adulta dolorida que estou se encontrou com a jovem esperançosa que eu fui
e ratificou minha convicção de que é preciso resistir. Resistir com amor, com
poesia, com dança, com música, com garra, com arte, com beleza para manter a
saúde emocional. Resistir fazendo uso dos meios disponíveis para me manifestar.
Resistir buscando informações em muitas e muitas fontes para não ser
catequizada pelos manipuladores da informação. Sim, quem se propõe a ouvir mais do mesmo o
tempo todo, pode acabar com sua capacidade de análise comprometida. É preciso ser um leitor plural, lendo
e ouvindo aqueles que concordam conosco e também aqueles que discordam de nós. É
preciso crescer e exercitar o respeito, prestar muita atenção aos fatos e lutar
pelo que se acredita.
Enquanto boa parte da classe
política do nosso país exerce seus podres poderes, estamos nos perdendo ao dividir nossas forças. Enquanto eles nos vencem, saqueiam e
oprimem, nos desgastamos em confrontos nas ruas ou em redes sociais. A polarização tem facilitado muito a vida deles. Até
quando nos conformaremos com ridículos tiranos?