terça-feira, 29 de agosto de 2017

Rosa vívida

Para Rosa,
minha avó querida.


Cabelos brancos.
Ombros curvados.
Passo feminino e lento.

Pelas lentes octogenárias
o mundo parece um canto simples.
Rotina. Rudimentar.Trivial.
Deslumbramento.
Riso compreensível
diante de juvenis afobações.

Lugar de aprendizado é trajeto
e trajeto é sempre.
Florescendo aqui em casa

O vento muda de uma hora para outra.

Muda o tempo, a direção.
A paisagem muda,
vezes emudece, vezes soa.
A vida é um tilintar
de movimentos.

Na roda viva
até a lucidez se esvai.

Vívidos delírios
de amor intacto.
Palpável e utópico.
Namora moinhos de vento.
Fiéis desejos.
Partida entre nuvens confusas
de parcial realidade.

A vida é só momento.

domingo, 27 de agosto de 2017

O filme da minha vida


Se há um programa de que gosto nessa vida é cinema. Sozinha ou acompanhada, na primeira ou na última sessão, a telona me fascina e, na imensa maioria das vezes, me proporciona uma viagem. Foi o que aconteceu vendo o novo filme de Selton Mello, livremente inspirado no livro “Um pai de cinema”, do chileno Antônio Skármeta. O longa traz uma gama de questões fundamentais abordadas de maneira cuidadosa e delicada e merece destaque também pela fotografia que revela, além de belezas naturais do sul do Brasil, um longo e trabalhoso estudo. 

Decidir nem sempre é fácil. Pode gerar arrependimentos e às vezes gera. Muitas vezes se quer mudar o presente, mas o peso do passado parece nos impedir. Muitas vezes não podemos transpô-lo sozinhos, precisamos do amor, da generosidade, do impulso e da torcida daqueles que nos têm afeto.


A história do rapaz que sente a ausência de seu pai, um homem que deixa a família e vai para a França e o aprofundamento de seus laços afetivos com a mãe, enquanto se inicia em sua profissão e descobre seu primeiro amor é envolvente e cheia de nuances para a além do drama principal.

Ali naquela poltrona de cinema, vi a vida passar diante dos olhos viajando numa locomotiva, perfeita metáfora para os caminhos que a gente segue e para tudo aquilo que pode nos tirar dos trilhos. Vezes, uma simples decisão pode ser a mudança de uma vida inteira, de um jeito de olhar a estrada, da mudança de hábitos para a aquisição de cuidados antes sequer considerados. Todo mundo tem em sua história um divisor de águas, um fato que o modificou profundamente e para a vida toda. Às vezes, numa descomprometida conversa com um maquinista, esse fato vem à tona, sobressai. A vida é mesmo diálogos e trajeto.

Sentada na poltrona do cinema, entrando e saindo daquele trem e pensando nos deslizes que têm consequências permanentes e que modificam significativamente as nossas vidas, fui me deixando encantar por Tony Terranova, por suas coragens e fraquezas. Entre uma viagem e outra, entre uma sessão de cinema e outra ali na tela, o filme foi se revelando e se tornando mais próximo.

Quem de nós não apostou na pessoa errada? Quem de nós não viu um amigo onde havia somente interesse próprio e manipulação da verdade? Quem de nós não se deixou seduzir apenas pela beleza? Quem de nós não teve na vida uma grande decepção? Decepções podem, em muita medida, ser o impulso que faltava para uma tomada de decisão, a superação necessária de um medo para a revelação de doloridas verdades. Decepcionar-se pode ser o caminho para o ponto de vista que faltava, para que se tivesse noção do todo em uma situação. Embora provoque dor e demande o esforço da recuperação, pode ser a retirada da árvore que, tombada na estrada, impede-nos de avançar.

O drama da ausência do pai. O drama da falta de uma razão, de uma explicação. O drama de saber que qualquer dúvida pode ser pior do que a mais dura certeza, uma vez que  a dúvida pode fazer paralisar, é sensivelmente retratado na tela. E porque o drama não é a única face da vida, a veia cômica surge para fazer mais leves os momentos dramáticos da caminhada. Cabem sorrisos e tristezas e revisão de posicionamentos diante dos dramas humanos apresentados.

E como é importante tentar colher a verdade na fonte e não apenas no discurso de terceiros. O controle emocional para permitir-se a descoberta é uma arte custosa, mas pode trazer benefícios àqueles que em lugar da pressa têm bons propósitos e firmes objetivos. Nada disso é fácil nem indolor, mas gera crescimento e, algumas vezes, o resgate da esperança. Nem sempre a situação é tão feia quanto se vê num primeiro olhar.

O filme fala de amor e de cobiça o tempo todo. Assim é a história, assim é a vida. O amor, sem dúvida, é a parte ensolarada do filme. E não será da vida? O despertar do bem querer e do afeto entre os jovens, a descoberta do sexo, a alegria provocada por tais revelações. Tudo é luz. Uma luz pálida e repleta de nostalgia, como convém a qualquer lembrança. Amor de pares. Amor de pai. Amor de mãe. Amor de filho. Acerto, erro,  caminhada e o contraste com um tempo que já vai longe e que também tinha hábitos nada saudáveis e que confrontam os dias atuais. Era muito cigarro, pouco cinto de segurança e nada de capacetes. Era assim mesmo. É... algumas coisas mudam para melhor.

Selton também aparece na tela e como não observar o ator talentoso, o diretor sensível e competente e o homem maduro que se tornou? Está belo e forte. Sua presença é enriquecedora e marcante, como acontece com aqueles que se encontram no auge de sua carreira.

O filme acabou. Eu e algumas outras pessoas permanecemos sentados, enquanto numa tela escura subiam letrinhas e mais letrinhas ao som de uma melíflua e apaziguadora canção francesa. Não havia pressa em deixar o cinema. Indubitavelmente tínhamos ganhado duas horas em nossas vidas.


TRAILLER OFICIAL DO FILME

domingo, 20 de agosto de 2017

Salve a fantasia!

A arte existe porque a realidade não basta.
(Ferreira Gullart)


Não é segredo pra ninguém que muitos estudiosos e escritores ressaltam o poder da arte e da beleza, dentre outras coisas, para a promoção e a manutenção da saúde mental e emocional daqueles que, de algum modo, a elas se entregam. A arte salva nossas sensibilidades. Neste momento particular de dificuldade por que todos nós passamos, acho que precisamos de terapia intensiva. Quanto mais arte melhor. Tenho aceitado a prescrição daqueles caras. São doses de poesia, crônica, romance, pintura, música, dança, teatro e muito mais. Além disso, muita beleza natural, deliciosas conversas e a presença de gente cujo afeto aquece a alma e o coração são elementos fundamentais.

Dia desses, fui ao Theatro Dom Pedro em companhia de familiares e amigos assistir a uma montagem de “Sonho de uma noite de verão”, de Shakespeare. Foi verdadeiramente uma noite de sonhos. A montagem feita pela Companhia Arteira de Nova Friburgo transportou-nos à fantasia e trouxe-nos o delicioso contato com nossa criança interior, através da mescla entre humanos e fantoches no palco. A perfeição dos movimentos dos bonecos, a delicadeza do cenário e da música e uma primorosa atuação nos colocaram, por mais de uma hora, em contato com o sublime.

Foi uma grande sacada da trupe fazer os fantoches representarem os personagens humanos, numa linda metáfora para a interferência dos seres élficos em seus destinos. Coube, então, aos atores a representação dos seres elementais. As trapalhadas de Puck, numa esplêndida e envolvente atuação de Cássio Campos, levaram-nos às gargalhadas, enquanto a riqueza musical foi, sem dúvida, uma facilitadora para sonhássemos regidos pela maestria de Shakespeare. Antes que provássemos da flor encantada, estávamos todos apaixonados.
Dia do espetáculo - foto da Companhia Arteira

Floresta. Desejo. Sonho. Conflitos. Elfos. Fadas. Vaidade. Manipulação. Dúvida. Destino. Amor. Tudo ali sensivelmente retratado numa viagem fantástica e poética para a posterior reflexão sobre os grandes dramas da humanidade. O teatro é mesmo um espaço privilegiado. Não raras vezes nos tira da apatia e nos põe representados no palco ou em contato com algo que desconhecíamos em nós.  Pode nos refletir por dentro e por fora, tão necessário susto. A arte tem essa extraordinária capacidade de nos abismar, algumas vezes de maneira muito leve e lúdica como nessa montagem. Sonhos, gargalhadas, talento, criatividade e beleza: tudo num só espetáculo. O teatro pode ser bálsamo para as agruras da vida e um portal escancarado para um mundo além do físico. De fato, viver só de realidade não basta.



SOBRE O ESPETÁCULO:
Gênero: Comédia
Duração: 90 minutos

Direção: Gabriela Ribas
Supervisão de direção para manipulação de bonecos: Marise Nogueira
Trilha sonora original e direção musical: Diogo Rebel
Elenco: Cacá Pitrez, Cássio Campos, Catherine Bom, Gabriela Ribas, Gero Band, Jerônimo Nunes, Maria José Silva, Nathália Newlands e Silvia araújo
Cenografia: Silvia Araújo
Figurinos: Joanna Ribas
Artesã bonequeira: N´vea Semprini
Iluminação: Erlom Cordeiro

terça-feira, 1 de agosto de 2017

Podres poderes

Saí de casa inocentemente para assistir a um show de Caetano Veloso. Tudo estava muito tranquilo até aquele moço elegante trajado de azul, no mais puro estilo um banquinho e um violão, começar a cantar. Nos primeiros acordes de Luz do sol, entrei em contato com um tempo que passou. Parece que fiz uma conexão com a minha adolescência e com o início da minha vida adulta, com os anos 80, com a conquista de direitos e a valorização da vontade popular.

Adolesci num tempo de luz, de abertura, de iluminação sobre o que tinham sido anos soturnos no Brasil. Embora não tivesse engajamento nos movimentos que vinham lutando pelas eleições diretas, era impossível não participar disso de alguma maneira. Os jovens e os nem tão jovens estavam nas ruas e Coração de estudante, de Milton Nascimento, era quase um hino. Era cantada nas escolas, nos bares, nas ruas. Tinha um ar de acalanto, de energia, de alegria e, sobretudo, de esperança. Acompanhei a eleição indireta, a morte de Tancredo, a inflação a galope. No meu primeiro ano de faculdade, só se falava nas eleições diretas.  Eu me lembro das campanhas eleitorais, da desinterdição das urnas depois de tantos anos em que estiveram lacradas. Era uma energia boa de um povo que começava a tomar as rédeas do processo democrático de seu país novamente. Era a energia carregada da esperança de um futuro melhor. Da construção de um país bom e justo para a juventude criar seus filhos e a maturidade ver crescerem seus netos.

Quando houve o impeachment de Collor de Mello, já acompanhei mais de perto. Vi brotarem os cara-pintadas aqui e ali e se tornarem atuantes em todo o país, me recordo bem, o som das ruas era uníssono. A grande maioria da população já não desejava aquele presidente, tinha pesadelos com Zélia Cardoso de Mello, a ministra que, no primeiro momento do governo, confiscou a poupança de uma parte significativa da população brasileira. Não foram só aqueles que tinham alguma reserva que ficaram com suas contas bloqueadas. Houve gente que tinha vendido um imóvel para comprar outro, por exemplo, e que diante do confisco ficou sem ter onde morar. Houve dor, houve suicídios, a coisa não foi brincadeira. Quando o presidente foi deposto, havia o sentimento da maioria de que isso havia sido justo.

Desse modo, tudo o que vivi na adolescência e juventude foi uma escalada ascendente de liberdade e de conquistas. Minha geração aprendeu a encher o peito e a boca e sacar as leis afirmando que tinha direitos. Eu acreditei. Cresci nessa onda e na ilusão de que os direitos, uma vez conquistados, estavam garantidos, que era pra frente que se andava, que havia direitos adquiridos. Sendo assim, os recentes acontecimentos no Brasil têm sido, mais do que um soco no estômago (ou muitos socos, sinto-me golpeada todos os dias), um momento de reflexão e da constatação de que direitos são apenas circunstanciais e que, para a sua manutenção, temos que cuidar deles o tempo todo. Do contrário, de um minuto para o outro, entre acordos e conluios, se esvaem e todos perdem.

Tá certo, a gente vê aqui e ali mundo afora as ameaças à democracia diante de nós na TV, direitos ruindo nos mais diversos lugares, mas a televisão é tão asséptica que tem qualquer coisa de ficção, de distanciamento, de nos informar como se estivéssemos todos longe daquele ponto. A TV nos ilude e nos adormece todos os dias. Se não fosse assim, como seria possível ter um aparelho desses na sala de jantar? Como comer diante das notícias e imagens de guerras e de mutilações? Eu acompanhava as democracias ameaçadas a distância, mas não via o risco aqui tão perto.

A realidade começou, nesse sentido, a me dar uns solavancos quando, logo depois da apuração dos votos nas eleições para presidente em 2014, alguns inconformados com o resultado das urnas começaram a pedir o impeachment da presidente eleita e tais protestos começaram a ganhar força com a participação de alguns políticos brasileiros. A oposição naquele momento começava a mostrar a sua face predadora em prol de um resultado e em detrimento da valorização da nação brasileira e do processo democrático, fomentando a divisão nascida na disputa eleitoral.

Quando Trump venceu as eleições dos EUA eu tive muita inveja dos americanos, muita. Não desse inacreditável resultado.Tive inveja da postura responsável de sua oposição. Da fala de Hillary Clinton que, diante da derrota, que nem ocorreu nas urnas, não perdeu a clareza de que o país era maior que seu umbigo e, portanto, conclamou os americanos à união pelo crescimento de todos. No Brasil, apesar do discurso do candidato derrotado nas urnas, não tivemos uma oposição responsável. Faltou à oposição, desde as últimas eleições, a grandeza de perceber o Brasil como um país. Ao contrário disso, o que houve foi o estímulo irresponsável e em causa própria para que seus eleitores fossem às ruas pedir o impeachment de uma presidente democraticamente eleita, no momento seguinte ao resultado do pleito. Faz parte do processo democrático aprender a perder. Há que se ter grandeza para continuar lutando por seus objetivos sem sabotar o processo legítimo das urnas.

A oposição sabotou o quanto pôde um governo legítimo. Foram pautas e mais pautas travadas no Congresso Nacional para levar o governo ao insucesso. O país ficou ingovernável. A crise econômica foi agravada. Um presidente, haja vista os “acordos e mais acordos” que têm sido feitos pelo presidente Temer, não pode governar sozinho. Mais tarde, diante das gravações apresentadas pela Operação Lava Jato, ficou claro nos diálogos de Sérgio Machado com Romero Jucá, que o medo, o pavor era de que aquela operação levasse boa parte deles ao naufrágio de suas carreiras políticas construídas nem sempre na legalidade. Desse modo, foram articuladas alianças e mais alianças para que salvassem a própria pele. O que fez a oposição nesse tempo todo? É como se ela, como dizem, tivesse descarrilhado o trem para depois “salvar” os feridos. Houve vítimas fatais? Para vítimas fatais cuidados médicos não resolvem coisa alguma. A oposição estimulou e promoveu o impeachment a um preço altíssimo para salvar sua própria pele. Sem falar naqueles que mudaram de lado pelo mesmo motivo.

Para agravar a crise vivida pelo governo Dilma naquela ocasião, faltou sensibilidade ao referido governo para lidar com uma parcela significativa da população que não o apoiava e que foi às ruas se manifestar.  As medidas tomadas pelo governo estabelecido ajudaram a pôr gasolina no fogo e a incendiar as possibilidades de reversão daquela situação. Àquela altura os movimentos já tinham certa autonomia e repudiavam alguns dos políticos que o incentivaram, chamando-os, inclusive, de oportunistas. Havia muitos manifestantes que defendiam a não participação de políticos naqueles protestos. Os movimentos, naquele momento, já tinham em grande parte outra identidade. No domingo anterior à nomeação de Lula como Ministro da Casa Civil, os movimentos de rua tinham levado três milhões de pessoas às ruas num protesto contra o governo e contra a possível nomeação do ex-presidente para um cargo ministerial. Não se ignora a voz de três milhões de pessoas impunemente. A nomeação dele para a casa civil soou, até para muitos que apoiavam o governo, como um desrespeito às vozes de uma parte significativa da população. Ao ignorar o movimento, o governo ajudou a jogar uma pá de cal sobre as possibilidades de superação da crise política em que se encontrava.

A realidade me esbofeteou pra valer mesmo naquela sessão de domingo da Câmara de Deputados que aprovou o prosseguimento do processo de impeachment da presidente. Olhava incrédula para a postura e ficava atônita com as falas de grande parte daqueles parlamentares. Pensava na gravidade do que aquilo significava para além daquele resultado, para o fato de que aqueles senhores e aquelas senhoras ocupavam cargos representativos e, portanto, representavam uma parcela da população. Suas condutas questionáveis naquele dia e nos dias que se seguiram àquela sessão colocavam em xeque o nosso congresso. Ética?! Decoro?! Nada disso parecia existir por ali. Passei, a partir daí, a olhar com mais atenção o número expressivo e crescente de votos em branco e nulos , bem como o enorme número de abstenções nos processos eleitorais para os mais diversos cargos políticos de nosso país. Nosso sistema eleitoral desconsidera esses números para os resultados, no entanto, diante do quantitativo de pessoas que representam, devíamos repensá-lo. Não basta criticar os que agem assim, tampouco rotulá-los de isentões. Tais votos também manifestam uma mensagem, a de que aqueles eleitores não concordam que nenhum dos candidatos inscritos os representem e isso é coisa à beça.  Para muitos, deixar de votar é uma decisão amadurecida e demasiadamente difícil. Jamais votei nulo ou em branco nem me abstive das votações, mas entendo quem o faz. É preciso pensar nisso com a seriedade que o assunto merece.

Depois de passar pela Câmara dos Deputados, o Senado brasileiro aprovou o impeachment, que  se consolidou como um golpe quando, dois dias depois de ser votado,  o mesmo Senado sancionou uma lei que flexibilizava as regras para a abertura dos créditos suplementares sem a necessidade de autorização pelo Congresso Nacional. A partir daquela data, então, estavam legalizadas as “pedaladas fiscais”, que foram o principal argumento para o pedido do impeachment presidencial. Ou seja, depuseram a presidente por uma ilegalidade que dois dias depois avaliaram como legal. Deram nó em pingo de éter bem na nossa frente. Ao contrário do que ocorrera no impeachment de Collor, a voz das ruas não era uníssona. Novamente havia sido desconsiderada uma parte significativa da população.

Pouco mais de um ano do ocorrido, o que temos visto é de abalar as estruturas das nossas esperanças. Temos um presidente que foi gravado em uma conversa comprometedora com o empresário e delator Joesley Batista  em que, o mínimo que se pode pensar, é que o presidente tenha prevaricado. Acusado pela Procuradoria Geral da União de crime de corrupção passiva, esse mesmo presidente, ao invés de tomar atitudes coerentes com a lisura e a transparência que o exercício de sua função exigem, toma providências no sentido de dificultar a visão da entrada do Palácio do Jaburu e estabelece o uso de mecanismos para dificultar a gravação de suas conversas, como é o caso da instalação  do misturador de vozes. Coisa que mais se aproxima de uma confissão de culpa do que do desejo de provar que não a tem. Sua manutenção na presidência tem se dado por manobras e mais manobras políticas que, se não forem ilegais, certamente são imorais. A crise econômica e financeira continua instalada. Houve perdas de direitos trabalhistas. Universidades públicas agonizando. O aumento do número de pessoas em situação de rua é visível. O aumento da violência e da criminalidade é sentido pela população até fora dos grandes centros. E ninguém se manifesta. Bem, isso é o que dizem. Tenho visto, pelo país afora, gritos e mais gritos de “Fora, Temer!” E esse coro está crescendo. Basta que haja uma reunião para que tal apelo surja naturalmente. Se os gritos não ganharam as ruas, não quer dizer que eles não existam, é importante que isso fique claro.

Por que os gritos não ganham as ruas? Há vários motivos, mas sobre dois deles eu gostaria de falar. Temos sido sistematicamente expostos ao medo. Medo de que a economia desande e que o país vá à bancarrota, como se o desacerto no campo econômico não estivesse intimamente ligado aos inúmeros processos de gestão fraudulenta, de rios e rios de propina de que nos dá conta o Ministério Público. É como se falassem para nós que os gestores não têm culpa, mas nós podemos pôr o país a perder por querer que o presidente responda o processo por corrupção passiva no Supremo Tribunal Federal. Há uma espécie de ameaça de que teremos responsabilidade pelo fracasso da economia se houver uma mudança. “Ruim com ele, pior sem ele”, nos avisam alguns a todo o tempo. Além disso, a pós-verdade, sem entrarmos na discussão filosófica se está sendo usada no sentido real ou equivocado do termo, mas pensando no significado que tem assumido no contexto atual, tem ajudado a nos confundir, valorizando mais a versão do fato do que o fato ocorrido em si. Dando mais crédito à versão do fato do que a verdade em si. Os discursos de alguns políticos são completa e propositada distorção dos fatos. Precisamos estar atentos a isso.  Temos o dever cívico de não nos deixar enganar. Concordar que um presidente não seja julgado por um crime do qual se tem provas é o mesmo que assegurar para toda a classe política que a lei não pode atingi-los.  É endossar a impunidade.  A população não foi para a rua? Há muitos meios de se manifestar, ir às ruas não é o único. É fundamental fazer uso deles.

E o que tem Caetano a ver com tudo isso? Passei boa parte da vida adulta vendo uma escalada crescente de conquistas e direitos, tenho estado dolorida vendo essas conquistas descendo ladeira a baixo. Constatar toda a fragilidade desses direitos tem sido um duro aprendizado. Olhar Caetano ali no palco, desfilando sua poesia ante meus olhos, lembrar que ele foi um preso político, que foi exilado; ouvir canções compostas em 1968; constatar as letras vivas e mordazes de algumas de suas canções e não pensar na situação atual do país, no estado de coisas que estamos vivendo, no avizinhamento de um tempo ainda mais sombrio é simplesmente impossível. É inevitável linkar o Brasil atual aos podres poderes de Caetano. Naquele show, a adulta dolorida que estou se encontrou com a jovem esperançosa que eu fui e ratificou minha convicção de que é preciso resistir. Resistir com amor, com poesia, com dança, com música, com garra, com arte, com beleza para manter a saúde emocional. Resistir fazendo uso dos meios disponíveis para me manifestar. Resistir buscando informações em muitas e muitas fontes para não ser catequizada pelos manipuladores da informação. Sim, quem se propõe a ouvir mais do mesmo o tempo todo, pode acabar com sua capacidade de análise comprometida.  É preciso ser um leitor plural, lendo e ouvindo aqueles que concordam conosco e também aqueles que discordam de nós. É preciso crescer e exercitar o respeito, prestar muita atenção aos fatos e lutar pelo que se acredita.

Enquanto boa parte da classe política do nosso país exerce seus podres poderes, estamos nos perdendo ao dividir nossas forças. Enquanto eles nos vencem, saqueiam e oprimem, nos desgastamos em confrontos nas ruas ou em redes sociais. A polarização tem facilitado muito a vida deles. Até quando nos conformaremos com ridículos tiranos?

PODRES PODERES
(Caetano Veloso)



SOBRE AS HERANÇAS DO PLANO COLLOR
http://istoe.com.br/58752_DIFICIL+DE+ESQUECER/

RESULTADO DAS ELEIÇÕES DIRETAS PARA A PRESIDÊNCIA DO BRASIL EM 2014
http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2014/Dezembro/plenario-do-tse-proclama-resultado-definitivo-do-segundo-turno-da-eleicao-presidencial

PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES PELO IMPEACHMENT DA PRESIDENTE
http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2014-11-01/protesto-contra-dilma-rousseff-fecha-avenida-paulista.html

CONVOCAÇÃO PARA PROTESTOS FEITAS POR CANDIDATOS DA OPOSIÇÃO EM DEZEMBRO DE 2014
http://g1.globo.com/politica/noticia/2014/12/aecio-e-oposicionistas-fazem-pela-web-convocacao-para-ato-de-protesto.html

SOBRE O DISCURSO DE HILLARY CLINTON
https://www.youtube.com/watch?v=1AJph8kHBYc#t=1154.821324

SOBRE AS MANIFESTAÇÕES POPULARES DE 13 DE MARÇO DE 2016
https://brasil.elpais.com/brasil/2016/03/13/politica/1457906776_440577.html

APROVAÇÃO DAS PEDALADAS FISCAIS PELO SENADO DOIS DIAS DEPOIS DO IMPEACHMENT
http://economia.ig.com.br/2016-09-02/lei-orcamento.html


OUTROS TEXTOS INTERESSANTES

Logo após o resultado das eleições
http://g1.globo.com/sao-paulo/eleicoes/2014/noticia/2014/10/na-paulista-tucanos-gritam-impeachment-e-petistas-pedem-choro-no-cantareira.html

De antes das eleições
http://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunistas/os-dilemas-da-atual-oposicao-a-presidente-dilma/