domingo, 22 de dezembro de 2019

Saudades

Decoração do Rio Sul - 2020
Lembro-me com saudades - múltiplas e plurais - dos tempos de minha avó. Era uma figura austera durante os trezentos e sessenta e cinco dias do ano, mas o Natal a transformava. O Natal a fazia vestir literalmente a fantasia para presentear seus netos. Era um tempo de preparo, trabalho e presentes. Um tempo genuinamente de luz.
É bem verdade que nosso Papai Noel era um velhinho pedagógico e que gostava de mostrar que sabia das traquinagens que havíamos feito durante o ano. E conversava conosco. E nos falava da escola. E nos lemança levada e o bom Noel era para mim uma figura muito séria, que só nos bonificaria se fizéssemos por merecer. Mas ele sempre tinha um presente, um conselho, uma recomendação. Vó Iracema tinha um olhar carinhoso daqueles que torcem pelo acerto de sua descendência.
brava da importância de respeitar nossos pais e de sermos companheiros de nossos irmãozinhos e primos. Tinha uma onisciência que me fazia temer, naturalmente: e agora? Presente ou não presente? Eis a questão! Era cri
Por meio dos olhos atentos de minha avó, recebíamos lições de amor e de respeito. De amor fraterno e de doçuras. Quem não se lembra do perfume e do sabor de suas deliciosas cucas? Quem não se lembra do ritual de preparação para o Natal que vivenciávamos a seu lado? Das horas quebrando as cascas das frutinhas natalinas para pô-las à mesa na hora da ceia?
Às vezes o ano havia sido difícil, fomos criados com muita dignidade, mas também com dificuldades. No entanto, o Natal chegava como um bálsamo superando tudo. Mais do que ganhar presentes, aquela era a noite de brincar com os primos até mais tarde, noite em que, a partir de determinada hora, o relógio perdia a importância e o sono era o limite para as nossas farras.

Curtimos muito. Bateu saudade.

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Para ela

Querida Fernanda Montenegro.

Deve ser triste descobrir na pele que aqueles que foram alçados ao poder, além de não terem cultura, não têm sequer educação. 

Vivemos tempos estranhos. Tempos em que a fantasia foi interditada. O que está liberado mesmo é o horror, a barbárie, o tiro, a pancada e a bomba.

A censura tomou novas feições e agora emana de um território muito virtual e pouco virtuoso que, infelizmente, atinge o mundo fora das telas.

Eu confesso que não havia pensado em viver tempos tão sombrios. Por alguns anos, esqueci do pêndulo da História e achei que era pra frente que se andava. Não se anda. Nem pra frente nem pra trás, ainda que estejamos retrocedendo, não estamos dando marcha à ré, o que estamos é construindo um hoje e um amanhã cheio de ontem. Um ontem que não deu certo. Um ontem que assassinou milhões de pessoas quer em câmaras de gás ou em fogueiras nas praças públicas do ódio. Sinto-nos tragados por um grande vórtice voraz de cotidianas barbaridades.

O ódio, lamentavelmente, não é novidade entre os humanos, o que a mim me causa estranheza é que ele tenha sido e venha sendo escolhido.

Acusam a vocês artistas da desconstrução dos valores familiares. Dos valores judaico-cristãos. Que valores? A hipocrisia dos homens e mulheres de bem que defendem a família tradicional brasileira, mas que têm 'namoradas' e 'namorados' fora do sagrado matrimônio?! A incoerência daqueles que pregam a fé em Deus, mas que comercializam a fé, vendem milagres e exploram a boa-fé dos fiéis?! O paradoxo de defenderem o Cristo, a mão forte do verdadeiro amor nesta terra, e pregarem a vingança em lugar da Justiça?!

Vivemos tempos surreais em que é permitido atirar em crianças até dentro do útero de suas mães, mas em que é quase crime defender a Arte.

Você sabe, querida Fernanda, quando se tenta massacrar a Arte, o que se deseja é matar as sensibilidades. Porque numa sociedade insensível, qualquer barbárie é permitida.

Vivemos o tempo do absurdo na carne. Já foi tempo que o absurdo era vivenciado nos palcos.

Mas volvo minhas esperanças para as palavras de Marieta Severo, que diz que a Arte sempre ressurge, e para os versos de Drummond que anuncia que flores brotam no asfalto, apesar do pasmo, apesar do asco, apesar da náusea. 

Haverá um tempo de gente mais ensolarada e educada, que jogará baldes d'água pra apagar o ódio e, em lugar de balas -  doces ou mortais - cobrirá de livros as nossas crianças.

domingo, 22 de setembro de 2019

O poder do abraço

Imagem disponível no Pixabay
Por fora fazia sol. Era um dia daqueles capazes de ensolarar até os cantinhos mais recônditos dos
ambientes. Dentro dela era inverno rigoroso. O gelo na paisagem dos sentimentos e a alma mal agasalhada de afetos faziam o corpo doer. Havia um descompasso evidente entre as estações dentro e fora.

Por fora havia flores prenunciando uma primavera azul, e rosa, e amarela, e roxa, e alaranjada, e um verdadeiro arco-íris de flores pelos jardins, avenidas e canteiros da cidade. Por dentro a neve inibia qualquer nesguinha de capim que ousasse pensar em brotar no solo de suas emoções.

Por fora a água jorrava em cascatas matando a sede de animais e de plantas. Por dentro era aridez e deserto num ressequido momento da vida em que a alegria esturrica ao sabor da angústia e da melancolia.

Ela estava dor. Ele era braços. Ela estava sombra. Ele era brilho prateado da lua sobre o mar. Ela estava choro. Ele era brisa. Ele a sabia e a reconhecia apesar da neblina, apesar do gelo, apesar da secura de gestos amargurados. Ele sentia a semente de flor ocultada sob a neve espessa. Ele sabia que aquela era estado e não essência. Olhando-a nos olhos, envolveu-a num abraço acolhedor  juntando dela o dentro e o fora. Colando sentimentos, secando lágrimas, deixando-a em condições de devolver-se a si mesma.

Foi como se o abraço dele somasse todos os outros abraços do caminho: da mãe, do pai, do filho, da amiga, da prima, do amigo. Abraço-abraço, abraço-palavra, abraço-canção, abraço bom dia. Abraços de longe e de perto, físicos e imateriais se fizeram soma. A dor começou a cessar, a paisagem interna se fez cor e começou a vibrar levemente.

Foi como se ele, com amor, costurasse a força de todos os outros carinhos manifestados nesses dois meses de hibernação, e essa costura desse início ao processo de lhe restituir as energias.

O abraço capaz de suportar toda a fragilidade dela havia sido capaz de despertar-lhe a cura.


domingo, 21 de julho de 2019

Firmamento


Imagem do Pixabay
Desde criança, sempre quis ser mãe. Brincava de bonecas cobrindo de cuidados o bebê que, sem perceber, já estava gestando no plano das ideias. É claro que essa análise é coisa que só posso fazer agora. Quando criança, via aquilo tudo apenas como a brincadeira que devia ser. Ponto para a infância!       
Aos 24, realizei aquele que seria o meu mais acalentado desejo: tornei-me mãe. Jamais vou me esquecer daquele par de olhinhos me fitando na sala de parto. Nem da troca de olhares durante a amamentação. É nesses momentos que se percebe que é preciso nutrir aquela criança que você carrega nos braços. E nutrir uma criança é coisa muito maior do que lhe oferecer leite e alimento. Dar-se conta da dimensão dessa tarefa e desse vínculo é descobrir que mãe é isso: parte coragem e bocado medo, parte certeza e bocado dúvida, parte acerto e bocado erro.
Ser mãe é descobrir-se na corda bamba sem sombrinha com um bebê no colo e, ainda assim, entender que a travessia é necessária, que é preciso buscar o equilíbrio na caminhada para vencer os obstáculos e chegar em segurança ao final de cada dia. Vida de mãe é toda travessia, receio, medo e enfrentamento.
Além da companhia de meu filho, a maternidade trouxe para a minha vida uma visão mais humana da figura de minha mãe e, com isso, a melhor compreensão de suas escolhas. Compreender que minha mãe era uma mulher lutando com todas as suas forças para acertar  e que, mesmo assim, errava vez por outra, me fez reconhecer a humanidade de minha mãe. Isso foi libertador. Para além da heroína de minha meninice, entendi que ela tinha, muito mais do que super poderes, o confronto diário com suas angústias e suas dúvidas, e que, portanto, estava muito mais próxima de mim do que eu imaginava. 

A maternidade transformou minha vida em muitos sentidos, inclusive, me apresentando com clareza meus limites e minhas impossibilidades. Ela sempre foi/será um exercício de força, superação e humildade. Qualquer febre alta de um filho mostra claramente que você não pode tudo, e isso dói. Maternidade é isto: doer-se e doar-se.

Daquele bebê de colo até o homem de 23 que hoje meu filho é, ser mãe tem sido amor e aprendizado. Lições de um amor maiúsculo que não dou conta de explicar. Apenas dou conta de sentir da minha perspectiva. Mãe é também um conceito muito plural, e cada mulher sente essa grandeza a seu modo. E há até aquelas que, com igual grandeza, decidam não viver a maternidade.

Da vista do meu ponto, creio que dar asas seja a parte mais complexa e delicada do papel de mãe, e também a mais fundamental. Orientar o voo e deixar voar. Eis aí o grande desafio. É para vencê-lo que mãe é feita, apesar da vertigem que provoca.
Imagem do Pixabay
O filho tem asas e tem céu, tem horizonte, sonhos, objetivos, planos. Vejo-o forte e capaz. A firmeza de seu caráter, o seu comportamento ético, o coração justo, a sensibilidade aguçada, a objetividade e a força são partes da sua grandeza. A criança cresceu e constituiu-se um rapaz admirável. O menino que transformou seus brinquedos-sonho em realidade pode conquistar seus objetivos, é o que penso. 

Ele tem asas. Eu sou ninho e ponto de referência. "Todo verbo que é forte se conjuga no tempo, perto, longe o que for', diz a canção que muitas vezes entoei para niná-lo. Eu e ele cremos nisso. Cada um tem o seu papel e, para muito além de todas as incertezas ou definições, somos mãe e filho. Há 23 anos professamos nossa fé na beleza e na força do significado que isso tem. 

A maternidade é, para mim, um ponto de luz. Céu e alicerce. É firmamento.

sábado, 30 de março de 2019

Que cidade a gente quer?

Registro de Yuri Moura
Quem me conhece um pouquinho que seja sabe do meu amor por Petrópolis. Eu amo esta cidade. A beleza, o clima, a atmosfera histórica, o azul mais azul do céu que a abençoa e até o ruço. Sim, acho a sua neblina um charme, uma espécie de véu que quando se dispersa descortina todo encantamento deste lugar.
Amando este lugar o tanto que amo, não é difícil para ninguém imaginar o quanto fiquei ofendida, triste, magoada e escandalizada mesmo com as imagens da brutalidade cometida no centro do centro da cidade. A Praça D. Pedro, o umbigo de Petrópolis, foi palco de uma cena triste no dia 30 de setembro do ano passado. Foi aqui, num comício, que se exibiu como troféu a placa que homenageava Marielle Franco no centro do Rio de Janeiro partida em dois pedaços. Mais do que chocada com a tentativa de capitalizar em votos com o assassinato de uma vereadora defensora dos Direitos Humanos - de políticos inescrupulosos se espera tudo - fiquei estarrecida com a reação eufórica do público presente àquela exibição da mais absoluta e absurda falta de sensibilidade. Pode haver algo mais bárbaro do que tripudiar da dor do outro em praça pública?! Andei meses inconformada, com o peito dolorido mesmo. Minha cidade não é isso, repeti pra mim mesma todos os dias durante todo esse tempo.
Foi uma alegria descobrir que eu não estava errada. No último dia 14, Petrópolis realizou um desagravo àquele ato bárbaro. Foi realizada, na mesma praça, uma ação da mais pura alquimia amorosa, transformando o local daquela imagem brutal em um grande círculo de orações. Foi um momento redentor em que a cidade professou a sua vocação para o afeto.
Petrópolis, sua linda, você é do bem, do afeto, do amor. Você é terra de Francisco e franciscanos - independente de credos e de religiões. É terra de transformar ódio em amor em Praça Pública, de transformar ofensa em oração a olhos vistos. E, por isso, hoje eu a amo ainda mais!
Parabéns, Petrópolis! 176 anos de vocação para o amor, para a beleza e para a liberdade. Quem quer transformá-la em outra coisa está contraindo no presente uma enorme dívida com a História e ficará marcado para sempre.

Petrópolis de amor e respeito é a cidade que eu quero, e você?

sexta-feira, 8 de março de 2019

Por que ela?

Para marcar o Dia Internacional da Mulher, acontecerá hoje em Petrópolis, a Marcha das Mulheres. A notícia foi divulgada ontem na página do Blog do Eduardo Ferreira, um conhecido jornalista da cidade. Como a caminhada homenageia Marielle Franco, era de se esperar que brotassem manifestações indignadas nas redes sociais. Não deu outra! Choveram comentários pouco elogiosos em relação à homenagem para a vereadora brutalmente assassinada há quase um ano na cidade do Rio de Janeiro. Não faltaram também repetições de inverdades sobre Marielle. Tais mentiras haviam sido amplamente divulgadas por ocasião de seu assassinato e, peremptoriamente, desmentidas por idôneas agências checadoras de notícias.

Olho para os tais comentários com imensa tristeza. Quer seus autores estejam conscientes disto ou não, eles representam a tentativa da anulação do outro. O que fica explícito naquelas falas é que se acredita que os diferentes não podem existir juntos numa mesma luta. Isso é tristíssimo. Somos todos diferentes uns dos outros e, ao contrário de isso significar uma perda, pode ser muito enriquecedor. O outro, com suas ideias diferentes das nossas, com seu jeito diferente do nosso, com seu saber em áreas diferentes daquelas que dominamos e com tantas outras qualidades diferentes das nossas, pode ser naturalmente um impulso para nos fazer crescer. Há muita beleza no processo de nos permitimos aprender com o outro.

Repeti a palavra diferente muitas e muitas vezes de maneira proposital. Diferente não significa adversário, mas diverso. Por que razões uma homenagem a Marielle excluiria a possibilidade de levar o nome da Juíza Patrícia Accioli ou o nome da Professora Helley Abreu Batista na mesma marcha? Todas são dignas de homenagem, sim! A caminhada, como bem diz o título da matéria, homenageia o Dia da Mulher Marielle Franco. Há muitas mulheres que merecem ser homenageadas, muitas anônimas inclusive. 

"Por que não homenagear aquela policial que foi morta em Niterói? Por que não aquela professora?" Perguntam alguns se referindo a essas mulheres sem sequer nomeá-las. "Por que não homenagear a juíza Patrícia Accioly?" Perguntam outros. "Estão tentando transformar essa mulher (Marielle) em mito." Afirma outra.

Por que homenagear Marielle Franco? Para quem não se lembra, estamos a uma semana de os assassinatos de Marielle e Anderson completarem 365 dias. Esse tempo significa um ano inteirinho sem que os culpados por suas execuções tenham sido identificados. E não, não há ninguém tentando transformar a vereadora em mito. Marielle é símbolo. Mas símbolo de quê? Da luta das mulheres pobres, negras, lésbicas, nascidas em favelas, para alcançarem representatividade. Ela é uma dentre as poucas iguais a ela que conseguem conquistar um diploma e ocupar um lugar de destaque na sociedade. No caso dela, um cargo de representação na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, a segunda metrópole do país. Isso não é pouco. Símbolo é diferente de mito. Símbolo é a representação de alguma coisa, no caso de Marielle, uma causa. Mito pode significar, por exemplo, “uma personagem real a quem se atribuem valor ou feitos extraordinários ou imaginários". Coloquei o conceito de mito entre aspas, uma vez que ele está registrado no dicionário Lexikon. 

Retomando o início desta conversa, eu pergunto: pra que tentar anular o diferente, se podemos caminhar/marchar por Marielle, por Patrícia, por Helley, por Marias, Marianas, Joanas, Gabrielas e por tantas outras mulheres que morrem em virtude de seu trabalho, de sua luta, de seus casamentos, de seus namoros, de suas amizades, pelos trajes que usam, pelo lugar em que nasceram ou por outro motivo qualquer? Não é preciso desconstruir um símbolo como Marielle para homenagear Patrícia Accioli, Helley e tantas outras. Uma não exclui o que as outras foram. Todas têm seu valor.  Marielle  revelou-se um símbolo tão forte que evoca a lembrança de todas aquelas mulheres citadas anteriormente.

Diante das inverdades que publicaram sobre Marielle Franco, posso até entender o porquê da resistência ao nome dela, mas não posso deixar de lembrar que cabe a cada um procurar a verdade sobre ela antes de falar sobre ela.  A propagação de mentiras é escolha de cada um. Cada um é responsável por aquilo que propaga levianamente. Cada ser humano que reproduz uma notícia falsa é muito mais do que um papagaio repetidor de falas alheias.

É bom lembrar que as estatísticas estão aí para a cada uma de nós que o número de mulheres assassinadas tem aumentado nos últimos tempos. São mulheres de todas as classes sociais, de todos os posicionamentos políticos, de todas as profissões. Diante da violência, no mais das vezes, nada disso importa. Para ser vítima de violência contra a mulher, basta ser MULHER. A caminhada é pelo respeito e pela valorização da mulher. Nessa luta, mais do que ser representada pelo símbolo A ou B, a MULHER precisa se representar.

O Dia Internacional das Mulheres não precisa nem deve ser de exclusão, mas de soma. A luta é para melhorar a vida de todas as mulheres. Marielle Franco, presente! Patrícia Acccioly, presente! Heley Batista, presente! Juliane Duarte, presente!

A propósito, desejo a Ághata Arnaus Reis, viúva do motorista Anderson, toda força necessária para a sua caminhada. Para todas as mulheres e para cada um dos homens que lutam pela conquista do respeito amplo, geral e irrestrito à mulher, um abraço especial pelo dia oito de março. Sigamos na luta!


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Sobre a caminhada:
A Marcha das Mulheres está marcada para as 18h de hoje.
A concentração será a partir das 17h na Praça da Inconfidência.
A caminhada parte da Praça da Inconfidência e vai até a Praça D. Pedro II.
Iniciativa da ação: Coletivo 8M.
Quem pode participar? Todas e todos aqueles que apoiam a luta pelos Direitos da Mulher.
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Confira a publicação a publicação  do blog do jornalista Eduardo Ferreira:
https://www.facebook.com/158429414269490/posts/1875600515885696/

Imagem: reprodução da internet

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Das coisas triviais

Manuela e Capitu
De férias em casa, querendo fazer  um agrado para as gatinhas, mudo a dieta habitual e começo o dia
oferecendo a elas uma pastinha para o desjejum, crente que estava abafando. Estava! Elas lamberam os beiços sem a menor cerimônia.

Já passado do meio dia, estava eu lavando louça, quando Manuela quebra o seu protocolo de boas maneiras e, subindo num tamborete, pousa as duas patas dianteiras sobre a borda na pia olhando ora para mim ora para o armário.

Julgando compreendê-la, dirijo-me a ela e pergunto:

- Você quer uma comida sólida?

Manu virou a cabeça e assim de lado, olhou fixo pra mim como se  protestasse:

- Oi?! Dá pra falar a minha língua?!

Constrangida com a minha falta de habilidade na escolha das palavras, tornei a perguntar:

- Quer comidinha, meu bem? 

- Miaaaau! Ela respondeu.

Peguei o pote de ração dentro do armário e já encontrando as duas gatas na beirada de suas tigelas, servi uma porção pra cada uma. Comeram com uma boca boa que só.

Voltando a guardar o pote no armário, foi inevitável pensar: os bichos sabem mesmo se comunicar, a gente é que, às vezes, escolhe mal o vocabulário.

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

A alma das coisas

Já passava da metade do mês de janeiro e ela estava lá, no canto da sala, me olhando de soslaio e me lembrando de que era extemporânea. Dizia-me insistentemente que, segundo as regras do manual do tempo certo de fazer as coisas – ele existe ainda que tacitamente – eu já estava uns doze dias atrasada e que o Ano Novo queria começar, enfim.

O Natal tinha sido pleno de leveza e carregado de felicidade, um momento alegre em um ano conturbado. De uma felicidade genuína e que realmente importa. Talvez por isso eu resistisse tanto em acomodá-la nas duas caixas que a acolhem por onze meses a cada ano.

Ela é simples. Bonita em sua simplicidade e abarrotada de significado. Lembra festa, vida, nascimento, partilha, presentes. Tem aquele quê de promessa de que no fim vencerão os bons e sublimes sentimentos, e de que há uma harmonia possível no horizonte.

Naquela manhã ela gritou mais forte. Bradou inadequação. Olhei-a atentamente e fui observando cada detalhe. Há ali muitos amigos representados nos enfeites: um anjinho aqui, uma botinha acolá, uma guirlanda. É permeada de presenças. Há de meus amigos e há de mim também. As notas musicais que a adornam são de mim. Concebo música como gênero de primeira necessidade. Não podia faltar ali. De mim também, há um Papai Noel de absoluta irreverência em short e mangas curtas e um outro pedalando uma nada convencional bicicleta. Quem sabe eles não estão ali para atenuar aquele carrancudo velhinho da minha infância, que me assustava tanto, a despeito dos presentes que trazia?

É que aquela figura parecia ter uma bola de cristal capaz de dar conta de cada uma das minhas mais graves pisadas de bola, durante o ano inteiro. Encontrar Papai Noel era fazer um flashback das malcriações e prometer que seria melhor no futuro, ainda que, em alguns aspectos, eu soubesse que isso era absolutamente impossível. Era um Papai Noel bem invocado aquele da meninice. Viajei nas lembranças.

Quando dei por mim: árvore e enfeites na caixa e uma coleção de momentos revividos ao guardar cada objeto. Percebi que cada uma daquelas coisas me fazia mais próxima de bem-quereres e afetos vários, de tesouros e bagagens muitas. Bingo! Aí está o motivo de tanta demora em desmontá-la adiando-a uma vez mais para dezembro: minha árvore contadora de histórias é amplo manifesto de sentimentos nobres. A cada natal, percebo agora, junto de mim e dos outros para compor um símbolo de apreço e amizade.

A vida tem dessas coisas, você começa a desmontar a sua Árvore de Natal e realiza uma viagem no tempo. As coisas, às vezes, têm alma. É preciso ter olhos de enxergar. Que saibamos embarcar nas boas recordações todas as vezes que elas nos tragam conforto e paz. E que estejamos sempre no presente para plantarmos e colhermos afetos no ano que nasce todos os dias.

Bem-vindo, Ano Novo!