quarta-feira, 12 de abril de 2017

Crônica de um grande amor


Para Nanci Dias,
minha amiga querida,
por sua alegria e generosidade



Era uma menina comum, dessas assim iguaizinhas a todas as outras da sua idade. Cabelos loiros e lisos, sempre esvoaçantes na agitação de suas brincadeiras infanto-juvenis. Balanço de cordas na árvore frondosa do jardim, cheirinho de pipoca nas tardes de filmes na TV, amarelinhas e cordas puladas no quintal. Correria barulhenta ao redor da casa e risadas, muitas risadas. Tinha o riso fácil. Um bom humor a toda prova. Desses que neutralizam a rabugice dos amigos mau-humorados. Ria até mesmo das próprias resmungações.

Nessa moleca inquieta, que por vezes ainda tinha maria-chiquinhas nos cabelos, morava um espírito curioso que empreendia muitas viagens através dos livros. Ah, os livros! Quando descobriu a dimensão de seus mundos, não houve quem tivesse o poder de afastá-la deles. Eram histórias interessantes, engraçadas,  misteriosas, cheias de gafes e que muitas vezes provocavam nela generosas gargalhadas.

Lendo e relendo, a menina foi folheando um universo ora na realidade, ora na ficção e povoando sua vida de narrativas e personagens. O mundo vinha para ela "filtrado através das palavras", como diria o escritor Affonso Romano de Sant´Anna. Palavras e sentimento. Palavras e sensações. Palavras e lágrimas. Palavras e compreensão. Palavras!

Desejava sempre mais e mais leituras de escritores variados, sem se dar conta de que a essa altura já estava completamente apaixonada por um gênero literário específico: a crônica.

Devorava as crônicas com a avidez de um homem adulto que tem a necessidade de um prato fundo e com a curiosidade da moça que ia se tornando. Assim, alguns nomes iam ficando familiares: Paulo Mendes Campos, Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Otto Lara Resende e tantos outros. Sorvia esse banquete de letras associadas incontinentemente. 

"Para gostar de ler" era essa a coleção que reunia seu tesouro mais precioso. Tesouro igualmente par e variado.

Aos poucos a loirinha foi percebendo que buscava nesses livros um nome específico. Desse modo, todas as vezes em que pegava os livros, corria os dedos afoitos entre as páginas para ler o seu dileto. Com o passar do tempo, o dileto foi ficando tão dileto, que já não o queria mais assim embaralhado entre outros autores. Ela o queria só e o desvendava mais e mais.

Primeiro vieram as histórias, a maneira de contar um fato corriqueiro, as palavras comumente por ele usadas, a descoberta do estilo, a adivinhação dos vocábulos seguintes. Aos poucos foi descortinando o cara que havia  atrás das páginas impressas. Era natural que perguntasse para si mesma quem era esse moço que a encantava tanto.

Não lhe bastavam as crônicas. a essa altura precisava preencher-se dessa alma. Pesquisava sobre o dileto, conhecia seus hábitos e seus desejos. Degustava fotos e biografias. Os olhos adolescentes tinham particular interesse pelas fotos. Analisava-as cuidadosa e detalhadamente. Não tardou que os pequenos e brilhantes olhos dele lhe chamassem a atenção e desejou ver-se refletida naquele par de espelhos. Apaixonou-se.

Experimentava a todo tempo maneiras de estar próxima, ainda que não geograficamente. Quis ser mineira: foi devagar que tinha pressa. E ter mais gosto: tutu de feijão com torresmos. E sobremesa: goiabada cascão com queijo palmira.  E passo a passo foi adentrando o mundo dele e se encantando mais e mais.

Havia algo que ele admirava imensamente e, a medida que o tempo passava, ela ia se tornando. Ele era um grande admirador da mulher e era para lá que a menina ia seguindo, inevitavelmente. 

E que mulher! Viveu paixões. Primeiro beijo. Primeiro namorado. Estudou. Trabalhou. Despertou diversas atenções. Faceira, andava de bicicleta pelas ruas da cidade imperial a entregar jornais, uma maneira bem alfabética de ganhar a vida.  Sorveu a História da cidade onde morava observando gente, árvores e prédios. Viu diferenças. Namorou o Teatro. Experimentou os palcos e gostou. E foi gerando um banco de dados de óptica pessoal, que passou intensamente por essa etapa. Mais namorados, mais descobertas, mais lágrimas, mais sonhos e gargalhadas. A mulher recém-nascida conservara intacta a habilidade do humor. Que bênção!

Encontrou o amor e despertou a mais intensa e íntima mulher que havia em si. Tornou-se mãe. Conjugou pacientemente os verbos aguardar, evoluir, surpreender e foi felicidade muita quando os dois pequenos começaram a juntar as letrinhas para escrever e ler o mundo em que viviam. Letras, palavras, orações, períodos, frases, textos, capítulos, romances, coleções inteiras. A vida ia passando num crescente, como acontece com a obra literária. Literária... palavra mágica! Filhos crescidos, foi cursar Letras.

Teoria da Literatura. Comunicação. Prosa. Verso. Rima. Métrica. Compasso. Enjambement. Estudos. História. Gramática. Sintaxe. Latim. Diretório Acadêmico. Semana de Letras. Amigos. Gêneros literários, CRÔNICA e... ELE, o preferido. Ela, que sempre dividira com a família os seus prazeres literários iria agora estudar seu ídolo nos bancos da faculdade e enxergá-lo à luz da Literatura.

Respirou fundo, cruzou a fronteira. Escreveu carta e obteve resposta. As letrinhas dele lhe chegaram no rosto de um livro, sob forma de presente e dedicatória. O autor do outro lado das linhas foi, algumas vezes, o leitor dessa mulher. E a leu de maneira competente. Ele teve medo de sofrer? Boa pergunta. Embora o encontro marcado nunca acontecesse, ele deixara nela, irremediavelmente, a mais terna e preciosa herança: adulta, ela acredita em estrelas e invariavelmente vai buscá-las.

Duas crônicas do autor preferido dela:

DEZ MINUTOS DE IDADE
https://www.facebook.com/media/set/?set=a.1777421109241572.1073741842.1708697116113972&type=3

MINAS ENIGMA
http://www.releituras.com/fsabino_minas.asp





4 comentários:

  1. Aonde eu estava esses anos todos que me perdi de você, amiga linda sensível literária? Gratidão ao universo por ter nos (re)aproximado, por tê-la como mentora nesse momento de renascimento!Escrever é maravilhoso, e você me inspira ainda mais!

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    1. Oi, Ana! Acho que as duas estávamos por aí crescendo. Trilhando separadas para agora, mesmo distantes, de alguma maneira trilharmos juntas. Nos inspiramos mutuamente. Obrigada pelo carinho, viu? Beijo grande.

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  2. Incrível. Uma sensibilidade e habilidade ao usar as palavras! Passa tantos sentimentos ao leitor. Amei cada palavra
    Obrigada por compartilhar tanta arte

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    1. Pamela querida. Obrigada por ler. Escrevi para a Nanci, mas há algo nesse texto que me faz lembrar e pensar em você: o amor pela leitura. A sua alegria com os livros. Eu que agradeço e muito.
      Beijos.

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