Sou do
tipo que procura estar em oração e confesso que as orações naturais são as
minhas preferidas. Observar o sol nascer lentamente ou vê-lo se pôr anunciando
o fim de mais uma etapa. Ouvir a canção das águas de uma cachoeira, o barulho
incessante do mar. Escutar o canto do vento e dos pássaros. Ver o céu azul que
nos chama à vida. Perder o olhar nas árvores em flor. Sentir o perfume da
rosa recém-brotada no quintal. São todas formas de me conectar com o sublime, de
transcender o automático e o cotidiano.
Pôr do sol no Leme - arquivo pessoal
O
mar salgando meu corpo é paz. O chocalho das conchas voltando nas ondas na
beira da praia é louvor. A areia instável sob meus pés é lembrança de que a
vida é também mudança e variação, mas que se pode equilibrar. O
dourado do sol nas águas salgadas é pura iluminação. O pássaro que mergulha
para pescar é beleza. Os movimentos e sons harmônicos do oceano sugerem
meditação, encontro, conversa íntima com o Supremo, com o Criador, com Deus ou
com qualquer outro nome que o Bem possa ter.
A lua
nascendo é encantamento. O céu cheio de estrelas são infinitas possibilidades. Um entardecer cor de rosa ou alaranjado é o coração aquecido.
As nuvens formando figuras no céu são sonho. O verde contrastando com o azul é
graça. Pássaros voando são uma ode à autonomia. Fruta crescendo no pé,
alimento. Água fresca na fonte, refrigério.
As
orações naturais me acalmam e me levam à construção de minhas próprias orações.
Hoje o vento assovia nos fios e frestas. Sacode as janelas, desassossega as
folhas nas copas das árvores. O tempo cinza me diz que nem tudo é bonito, o ar
está pesado e a chuva está num-cai-não-cai inquietante. O dia me lembra
mudança, me diz que está do jeito que não é pra ser ou por outra, que ele pode
ser muito mais do que isso. Traz-me à lembrança as potencialidades e me faz
sonhar. Um dia cinza não é um ponto final, mas a véspera de um dia pródigo de
sol e alegria. Tudo hoje me faz pensar no tempo de espera e preparação. Lanço mão de um livro.
Vezes,
cerco-me de alguns outros tipos de oração: um poema, uma ida ao teatro, um
concerto, uma crônica, um romance arrebatador, a tranquilidade de uma igreja
vazia, um café com amigos, conversas com o filho, carinho dos pais. Sou do tipo
que reverencia a beleza, o afeto e a liberdade. Liberdade de oração, inclusive.
Tudo celebro, agradeço e peço nas mais variadas situações. Tudo o que apazigua
considero prece.
Rezar é
coisa subjetiva. Cada um tem seu jeito de se elevar, de sintonizar as forças
que equilibram o universo em busca do seu próprio equilíbrio. Muitas vezes
rezei ao volante, num gostoso bate-papo divinal estrada afora em busca de
soluções e de entendimento. Deus é simples e está em toda parte é bom não nos esquecermos
disso.
Era pra ser só um café, um
momento de descontração no fim da tarde, um encontro comigo mesma. Já faz tempo
que sou dessas, não adio descompromissos por falta de companhia. Teatro,
cinema, show, recital, passeio, sorvete, café, nada obrigatório, descompromissos
puros e prazerosos em que não cabem adiamentos. Se tem alguém para ir junto,
ótimo. Se não, ótimo. Ontem foi assim, eu comigo, meus pensamentos, minhas sensações.
Era pra ser só café, foi música, aroma, sabor e muita
observação. Como é bom terminar um dia
em que tudo deu certo numa cafeteria! Um dia em que tudo dá errado também. Café é perfeito para um brinde ou como bálsamo.
Tudo corria do mesmo jeitinho:
cardápio, simpatia, pedido, café. Clientes comportados e falando baixinho, como
são os ambientes de cafeteria em geral. De repente, surge um menino. Ele,
acompanhado por pais e avó, trouxe um bocadinho de inquietação àquele lugar. O
pula que pula, a voz mais elevada, a brincadeira irreverente do pai com o
garoto. Levei um susto. Não é que o rapaz estourou o pacotinho plástico que vem
cuidadosamente embalando os talheres?! Ele mesmo se assustou quando se deu
conta do que fizera. Eu ri, mas confesso que agitação não era exatamente o que
eu estava procurando naquele lugar. Sou de silêncio e sons, ontem estava mais
para a segunda opção.
A estada do menino por ali foi
curta, como são próprias das paradas infantis em “lugares de adultos”, mas transformadora.
Eu disse que era pra ser só um café, mas não foi isso o que se deu. Na saída,
bem pertinho de mim, o garotinho deu de cara com uma vitrola. Foi um espanto. Ele
jamais havia visto coisa igual e tampouco sabia para o que servia. Curioso,
aproximou-se do objeto e crivou o pai de perguntas. O pai bem que tentava explicar na
teoria, no entanto não dava conta de satisfazer à curiosidade do filho. Um
pouco distante, o proprietário do estabelecimento observava tudo atentamente. Aproximou-se,
desligou o som e ligou o toca-discos para o pleno encantamento do menino. Pacientemente virou o
disco e mostrou que do outro lado tinha mais música, o menino silenciou entre a
surpresa e a maravilha. Recolheu a experiência, agradeceu e saiu dali levando
uma história pra contar.
Eu sorri, dessa vez, emocionada.
Havia presenciado um momento de fascínio e descoberta. Além disso, o sorriso
generoso do proprietário do café ao ter servido ao menino um tanto de fascínio denunciava a sua satisfação e me fazia lembrar de uma bela crônica
de Affonso Romano de Sant' Anna, que nos
fala exatamente que “cada um tem um momento, um gesto, um ato em se que
individualiza e brilha”. O moço tinha se iluminado ao encontrar o que tem de
mais próprio em si: o prazer de fazer o outro se sentir bem, confortável. A cena foi simples, mas me deixou
contemplar “o incêndio de cada um”: o menino colhendo frutos de sua curiosidade
e o rapaz extrapolando o ato de servir ao doar-se. Meu café terminou, pedi a conta, vim para
casa, mas a poesia daquele instante está presente fazendo eco até agora. Era
para ser só um café, mas foi beleza e testemunho dos fragmentos poéticos que a
vida nos dá.
É bonito ver alguém fazendo
aquilo de que gosta. O contentamento escapa-lhe pelos poros e nos atinge de alguma
maneira. Lembrei-me de um balconista da lanchonete da faculdade, seu nome era
Messias (eu me lembro e já faz 14 anos que deixei a universidade). O pão era o mesmo, as frutas também, mas
quando ele preparava o suco e o sanduíche, o sabor era diferente. O aprazimento no preparo agregava um tempero especial e inigualável. Há algo mágico que emana
daqueles que estão no lugar certo fazendo aquilo que gostam. No lugar que desejam
ocupar. A alegria deles nos contagia, vem conosco e nos faz mais ternos e
felizes também, a gente se sente mais vivo. A vida é também essa maravilhosa
mudança de roteiros. O fim da tarde de ontem era para ser só um café, mas foi
muito além disso e, uma vez mais, a cafeteria fez jus a seu slogan.
Confira também a crônica "O incêncio de cada um", de Affonso Romano de Sant´Anna:
De repente a gente se dá conta de
que viveu um grande amor. Um sentimento todinho maiúsculo e que, mesmo que não
tenha durado a vida inteira, foi capaz de nos transformar para a eternidade. Não
que não soubéssemos antes, mas agora essa certeza é ainda mais clara e pungente.
E aí descobrimos que nossas vidas estão divididas em antes e depois desse amor.
Que ele foi fundamental para o nosso crescimento, que nos fez conviver
genuinamente com a partilha, com todas as nossas impossibilidades, que nos
apresentou o respeito amplo e irrestrito pelo ser humano que somos. De repente
nos damos conta de que fomos verdadeiramente amados e de que em verdade amamos.
Que naquele relacionamento não havia rede de proteção. Que era saltar e ter
certeza do amparo, do abraço, do afago, da escuta, do beijo, da cumplicidade, do
encontro.
Há parceiros amorosos que nos
mostram o melhor de nós. Que nos enxergam antes de nós mesmos, compreendem
nossas falhas e nos apontam nossas possibilidades, que respeitam nosso tempo de
chegada e, sobretudo, não nos apressam. São puro e autêntico acolhimento. Nos
veem e, ainda assim, não se espantam, escolhem permanecer, somar, dividir,
ouvir, calar e dizer. Escolhem trilhar o caminho lado a lado conosco em
harmonia, transcendendo os solavancos que o dia a dia nos dá, ainda que por um
tempo. Há encontros que são de corpos, de sentimentos e de almas e que, por
isso mesmo, nos fazem querer ser amigos melhores, amores melhores, amantes
melhores, pessoas melhores. Do convívio com alguém assim, saímos sempre uma
versão aprimorada de nós mesmos. Inteiros e fortalecidos. Damos um upgrade em
nossa humanidade. Isso não se mede.
São encontros que suplantam as
lembranças e a presença, ficam vivos na pele, nas retinas, no coração, não saem
de nós. São pessoas que passam pela vida da gente e fazem morada, ainda que
resolvam partir. Gente encantada e encantadora que nos faz ver a vida de um
jeito mais simples e que, mesmo ao ir embora, nos deixa a leveza e um refúgio
de paz como herança. Gente capaz de plantar em nós uma essência de otimismo e
esperança. De despertar nosso olhar mais colorido para a incrível oportunidade
que é viver, bem como a habilidade para ver que a felicidade é o grande motivo
e que ela existe mesmo em dias tristes ou repletos de saudade.
Há relacionamentos marcantes e
amadurecidos que, por motivos, explicáveis ou não, não foram feitos para durar a vida toda. Quando isso ocorre, não há desespero na partida. Há dor, respeito
e compreensão. Separação: prova de fogo para qualquer amor. Sua sobrevivência a
um abalo desses, a constatação de que a liberdade é laço inquebrantável entre
aqueles que se amam. Diante da ausência e da partida do amado, os telefones não
tocam desesperada e desesperadoramente nem explodem em oitocentas mil mensagens
de amor desaforado que não aceita a decisão do outro. Tudo é paz, ainda que uma
paz dolorida e tristonha e que demore um tempinho para se tornar aquela falta
gostosa de sorriso de canto de boca a cada lembrança. Há uma beleza cheia de
dignidade nesse tipo de separação. O que fica é gratidão imensa por ter podido
viver um relacionamento desse quilate. Por ter podido semear e colher a florada
dessa relação. Por ambos saírem dela tomados de força e coragem. A não ser a necessidade de um de partir e o
desejo do outro de permanecer, tudo é recíproco. E o respeito suplanta todo e
qualquer desejo. Não há espaço para cobranças ou acusações. A esta altura, você já sabe que o
título desta crônica tem, sim, estreita relação com o filme inspirado no romance
homônimo de Jojo Moyes, a que assisti e achei imperdível e fascinante, não apenas
pelo grande dilema que propõe, mas por evidenciar as profundas mudanças que um
amor pode causar em seus pares, sobretudo quando se está aberto para que elas
aconteçam. Um amor assim não se esquece e, quando a saudade bate, ela é só saudade, autêntica e sublime, saudade-presença sem qualquer visgo de melancolia. Amar é também se abrir, viver
e descobrir, na contramão do que diz o poeta, que há amores que se sagram
eternos porque duram infinitamente.
Observação:
Foto disponível em https://pixabay.com/pt/p%C3%B4r-do-sol-mar-de-barco-navio-675847/
Acabo de ler o pequeno grande
livro “Para educar crianças feministas – um manifesto”, de Chimamanda Ngozi
Adichie. O texto é daqueles cuja leitura é rápida e o conteúdo transformador.
Nascido a partir de uma carta que a escritora redigiu como resposta à pergunta
de uma amiga de infância que, na época, desejava saber como criar sua filha recém-nascida
como feminista, o livro propõe caminhos para que tentemos, através da maneira
de criar nossos filhos, preparar um mundo mais justo para mulheres e homens e nos
faz pensar.
A leitura me remeteu à maneira
como fui criada e também ao modo como criei meu filho, hoje com quase 22 anos.
Conforme lia, encontrava aquela menininha que um dia eu fui e, não poucas
vezes, desejei ter ouvido algumas daquelas palavras ali escritas, para que
pudesse ter enfrentado essa vida mais dona de mim e de maneira mais corajosa
também. As coisas que são plantadas na cabecinha de gente em tenra idade, às
vezes sutilmente, deixam uma herança que em alguns casos precisa ser resolvida no
consultório de um terapeuta. Bem, aquilo que passou não tem jeito, está escrito
e virou história, mas revisitar o passado sem melancolia é também processo de
aprendizado. O negócio é daqui para frente e, saibam, mesmo para mim, uma
mulher de 46 anos, ler certas coisas contidas no manifesto, ajudou a fortalecer
a alma - a de mulher, a de mãe e a de filha também. É reconfortante e
encorajador dar de cara com uma sentença como: “as pessoas vão usar a
‘tradição’ seletivamente para justificar qualquer coisa” e perceber que é a
mais pura verdade e que muitas vezes isso está intrinsecamente ligado à
manutenção de discriminações e injustiças. Ler o livro da nigeriana pode, mais
do que ajudar a criar filhas e filhos para uma vida mais justa, ajudar a fechar
velhas feridas.
A autora faz um verdadeiro carinho nas mães, sobretudo naquelas de primeira
viagem, quando expõe tão claramente que criar seus próprios filhos é muito mais
difícil do que palpitar na criação dos filhos dos outros, que é uma tarefa
gratificante sim, mas uma realidade bastante complexa. Dessa forma, ela mesma diz que vai “tentar” criar a sua própria filha segundo as suas proposições -
ela foi mãe depois de ter escrito a carta – e incentiva que as mães – citadas na
figura de sua amiga – peçam ajuda, que sejam boas para elas mesmas. Lembrei-me
de três casais de jovens pais que acompanho bem de pertinho e, com alegria,
percebi que têm ideias semelhantes a algumas constantes do texto, na
perspectiva da construção de um mundo mais equilibrado, de uma vida mais leve e
de uma realidade com mais justiça.
Ver meu filho aqui em casa também
me enche de contentamento. Ver o cara respeitador das individualidades alheias que
ele é, é constatar que ensinar a ele sobre a diferença, sobre não atribuir
valor à diferença, foi parte fundamental de seu processo educativo. É claro que
também cometi erros pelo caminho, todos cometem, muita vez, falar sobre eles
também é importante. O diálogo, a confiança, a disponibilidade para oferecer a
linguagem ao seu filho são coisas de suma importância e Chimamanda fala
sobremaneira sobre isso. Aliás, sobre a linguagem, há uma frase belíssima e que
gera reflexão imediata: “a linguagem é o repositório de nossos preconceitos, de
nossas crenças, de nossos pressupostos. Mas, para lhe ensinar isso, você terá
de questionar sua própria linguagem.” Aí está explicitada de forma contundente
a importância crucial da linguagem em nossos relacionamentos, em nossa relação
com o mundo e na perpetuação ou não da transmissão de conceitos equivocados aos
nossos filhos.
Sempre me debati com a palavra
pãe. Jamais gostaria de receber parabéns no dia dos pais. Sempre me entendi como
mãe. O abandono emocional de seu próprio pai – quer seja biológico ou adotivo -
é uma ausência que uma pessoa leva para a vida toda, mesmo que busque e
encontre referências em um avô, um tio ou em um amigo ou namorado de sua mãe,
mesmo que supere esse trauma. Muitas pessoas podem até esquecer que ser pai é
muito mais do que ser um provedor e escolherem exercer somente o segundo papel ou nem esse,
mas o fato de um filho ter sua mãe ali presente o tempo todo diante dessa
ausência, significa apenas que o filho tem a mãe presente, que ela é a melhor
mãe que consegue ser, e não que ela esteja exercendo os dois papéis. O
contrário também é absolutamente verdadeiro. Adichie exalta a relevância dos dois papéis,
refuta o uso da palavra pãe, e nisso concordo em absoluto com ela.
Mais do que um roteiro para a
criação de crianças feministas, o livro é uma importante reflexão sobre a
importância da educação de nossas crianças para a construção de um mundo em que
haja respeito à diversidade, respeito entre as relações humanas e, sobretudo,
respeito ao espaço e à autenticidade de cada um no convívio social. O livro é
pequeno, tem preço acessível, a linguagem é clara e objetiva, a leitura é fácil
e rápida e seu conteúdo é transformador. É um livro fundamental.
É escuro, surgem ruídos que não
se pode identificar, há um violão e um desamparo. Só eu que sinto esse perfume
espalhado pelo ar? Ela dorme. Princesa, rima ocultada, estrela atrás da nuvem.
Dorme.
Foto de Fábio Seixo
A voz de Matheus ecoa ainda
tímida, vem do palco e não o vemos. Aos poucos, ele desenha em tinta vocabular o
início de sua história e corajosamente a divide conosco. O pranto, o dele e o
nosso, é inevitável. Há uma grande vontade de abraçar o triste e solitário
menino que se despe de suas feições adultas diante dos nossos olhos, ainda que
estejamos todos numa penumbra incômoda. Triste, solitário, magoado e transbordando de dor, de amor, de saudade. Ela se matara, quando ele tinha apenas três meses.
O desejo de trazer Maria Cecília
para a luz se cumpre. Se faz por letras, sílabas, palavras, versos inteiros,
músicas e gestos, ora delicados, ora vigorosos e cheios de tenacidade. Quase um
balé.
Delicadamente vão surgindo as
angústias da mãe de um bebê recém-nascido que chora, mama, dorme, suja as
fraldas e, vez por outra, tem essa rotina quebrada por um evento cheio de
preocupação: o vômito. A maternidade em sua face nada glamorosa aparece e vem
contracenar com o menino.
O texto é mais que um diálogo,
uma vivência. É processo. Participamos todos da tristeza que provoca uma vida
que se vai tão cedo, da falta de colo e do brinquedo colorido, da queda
solitária da criança. A melancolia é irremediável, o moço essencialmente triste
e com jeito de quem está querendo ser criança outra vez não a espanta dos
olhares à luz. A dor é um direito, precisa ser vivida.
No tablado, a ferida é exposta
com delicadeza em uma mistura terna, e áspera, e dolorida, que a ausência
provoca. Ao som primoroso de violão e violino, o ator se estilhaça e se recompõe sob
nossos olhares comovidos e atônitos e nos conduz, através dele mesmo, da poesia e da música, à
conversão da melancolia em beleza, coisa que só pode fazer mesmo quem tem as
mãos de um jardineiro quando está chovendo.
O espetáculo de Matheus
Nachtergaele é poesia em movimento. É
alquimia. É a transformação do sofrimento em arte. É uma flor brotada da
sensibilidade e da intensidade que só tem um menino-homem que transpira amor e sorri à toa. É um
convite para valsar apesar do destino, por mais duro que ele possa ser.
Processo de Conscerto do Desejo é
o mais perfeito e generoso poema composto a quatro mãos por Matheus e Maria Cecília,
numa parceria imperdível. É preciso ir ver.
SOBRE O ESPETÁCULO:
Matheus Nachtergaele ficou órfão de mãe aos três meses de idade. Maria Cecília, que cometera suicídio, deixa alguns textos e poemas aos quais o ator tem acesso na adolescência, através de seu pai. Na vida adulta, na tentativa de superar a dor que o fato traz à sua vida, Nachtergaele realiza o emocionante espetáculo com os poemas de sua mãe e convida o público a participar dessa superação num sensível concerto de voz, atuação, violino e violão. A arte é o principal instrumento desse processo.
Foto de Fabio Seixo (A quem agradeço pela autorização para o uso da imagem) Agência O Globo - disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/teatro/nachtergaele-celebra-mae-morta-quando-ele-tinha-3-meses-em-peca-17997243 Mais poesia: (Atualização em 16.09.2017)
Concebi o espetáculo como um poema a quatro mãos: Matheus e Maria Cecília. Sendo assim, reuni aqui o belíssimo registro fotográfico da apresentação da peça em Petrópolis, a partir das lentes sensíveis e cheias de expressividade do fotógrafo Marco Oddone, e os versos de Maria Cecília Nathtergaele. Que maravilhoso concerto!
Eu procuro alguém Para fazer uma poesia comigo Tem que ser terno e triste É essencial que seja triste
Gestos de poeira Muita saudade Medo Os olhos de até logo Com jeitinho de adeus.
Tem que ser distraído Sorrir à toa Sempre querer chorar Mas nunca conseguir
E ter amado muito E ter sofrido E andar de poeta Que fala sozinho E falar muito abandonadamente
É preciso ter jeito De quem está querendo
Ser criança outra vez E as mãos... As mãos de um jardineiro Quando está chovendo
Que nunca saiba Como começar a falar Mas sempre saiba Como começar a sorrir
Mas a maior urgência que existe O essencial, Muito essencial, É ser imensamente triste.
Não, não fale! Eu não quero escutar. Cale, vai, quebre essa. Me deixe fora dessas reflexões tão duras. Mantenha esse silêncio de estourar os tímpanos, bote uns panos quentes e não me mostre. Eu não quero ver nem ouvir, muito menos pensar que tudo isso pode ser verdade e pode acontecer.
É duro! Qualquer um que trabalhe na área da saúde, em que o sigilo é tão precioso e tão caro, sente um violento incômodo já nas primeiras cenas do filme. É uma obra áspera, sem burilações e refinamentos. Trata daquilo que se quer empurrar para debaixo do tapete.
O silêncio, a solidão acompanhada dentro de uma família até na hora do jantar. O pai ali num papel secundário. A solidão da criança em casa. O desconhecido (alô!). A fantasia (é você, fulano?). O desequilíbrio, a transgressão, a dor, o preconceito. O afeto. A complexidade. A alternância de papéis. O agressor, o opressor, a vítima. Quem é quem nesse jogo da vida?
A terapeuta que rompe os códigos de sua profissão advogando em causa própria e aquela coisa de ver mais uma vez o profissional de saúde mental perdendo a linha, o tom, misturando o pessoal e o profissional e é possível que se fique pensando: mas isso não afastará ainda mais as pessoas desses profissionais? Não fará aumentar o preconceito? Bem, já há algum tempo tenho questionado um pouco essa maneira de olhar para a ficção como um impulso para a realidade. Vejo a ficção como um mote para a discussão, não como um padrão a ser seguido. Entendo que ela possa influenciar comportamentos, mas acho que a discussão tem que ser ainda anterior a isso: se é assim, por que estamos seguindo padrões "impostos" pela ficção? E que "imposição" é essa? Quem a está permitindo? Estamos mesmo assumindo que é a ficção e são as mídias que ditam o que devemos fazer sem questionar?
A gente se mexe na poltrona do cinema, ora irritado, ora constrangido, ora perplexo, sempre reflexivo. "Fala comigo", o filme de Felipe Sholl, com cenas cuidadosamente trabalhadas e com belíssimas atuações, toca em pontos incômodos, expõe tabus e fica reverberando na gente depois da sessão.
É, sim, é mais fácil olhar para o outro lado, pedir um café, fingir que não vê, mas as situações estão aí o tempo todo em todo lugar e, quer queiramos ou não, continuarão existindo, e por que não falar sobre elas?
Ler o livro de Lázaro Ramos é, de fato, como propõe o título, vestir a pele do autor. É olhar o mundo do ponto de vista dele e descobrir alguns ângulos antes nunca perscrutados. Ao menos comigo foi assim.
Muita gente defende a meritocracia como um caminho lógico e claro e diz por aí que quem luta, quem nada contra a corrente das várias violências e ameaças sofridas - veladamente ou não - vence, que superar as dificuldades é só uma questão de determinação, como se aquele que não vence fosse simplesmente fraco ou desistisse no primeiro espinho. Acho essa questão um pouquinho mais complicada e ler "Na minha pele" me ajudou muito a enxergar essas complicações com mais clareza. É que o ser humano não é constituído apenas de razão e de decisões racionais - e quase todo mundo sabe disso, mas sempre é bom repetir - há muito sentimento e emoção na humanidade de cada um e, nem sempre, acessar a lógica, traçar um caminho e seguir é simples assim. Há caminhos que sequer conseguem ser traçados, cada um reage de um jeito aos acontecimentos desse mundo. Ainda é, para mim, um denso mistério a reação de cada um aos mesmos fatos e como enquanto uns fazem disso a mola propulsora para alcançar, mais do que seus objetivos, suas potencialidades, outros paralisam e não conseguem prosseguir. Na especificidade de cada um há coisas que causam marcas em uns, deixam de atingir outros e dilaceram alguns. Não dá para julgar todo mundo por um, fazer isso é, no mínimo, leviano. Como tão bem ressalta Lázaro, as exceções vêm, muitas vezes, confirmar as regras.
O autor salienta o tempo todo o quanto foi importante para ele o conhecimento de si mesmo: "Compreender o que fazia sentido para mim foi libertador, pois assim é que buscamos o nosso caminho". Não é por acaso que essa frase está inserida no capítulo "Escolhas". Penso que talvez o que haja de especial nas exceções é que essa consciência do sentido tenha vindo cedo. Talvez e só talvez, é preciso frisar bem isso. Muitas vezes esse sentido, tão necessário para traçar um caminho, não vem na ordem cronológica. Há muitos caminhos e, vez por outra, sem encontrar o sentido, toma-se uma direção diversa daquela que seria a mais acertada para o desenvolvimento pleno do potencial de cada um.
Para além disso, o escritor cita inúmeras vezes o quanto foi importante, apesar das dificuldades relativas ao toque, receber desde sempre o afeto de sua família. É possível ler nas entrelinhas que Lázaro foi amado desde sempre e que isso fez toda a diferença. Nas linhas, ele destaca: "afeto é potência" e é nesse sentido que está conduzindo a educação de seus filhos para que sejam seres livres e plenos, que desenvolvam suas potencialidades com um olhar de respeito para eles mesmos e para os outros. É curiosa essa coisa de fazer sentido, não é mesmo? Isso acontece também com as expressões. Um dia a gente ouve algo que já tinha escutado, mas que alguém fala de um jeito diferente e plim, aquilo nos toca. Sentimos, então, aquela sentença como verdadeira, a visão se amplia. Foi o que aconteceu comigo ao ler "afeto é potência".
Toque, carinho, palavras de incentivo, referências, tudo isso é cuidadosamente tratado no fluido texto do autor. Ele traz uma linguagem leve, o que nos faz passar por temas árduos e chegar a importantes reflexões sem aspereza. Diz daquilo que a maioria já sabe, mas que é preciso repetir o tempo todo: "racismo é motivo de discriminação diária, sim". No entanto, coerente com aquilo que ele mesmo traz, é preciso dizer isso, mas sem se apropriar da linguagem do opressor. Numa proposta consciente e decisão manifesta, destaca a importância da inteligência e da delicadeza para abrir e ampliar a escuta.
Na pele dele eu pude ver e sentir um outro olhar do mundo e, algumas vezes, fiquei incomodada na minha própria pele. Algumas vezes na pele dele ou na minha pele esse ângulo do olhar do mundo nos aproximou, se não foi o racismo que apontou a minha "inadequação", foi outro ismo igualmente opressor das diferenças alheias e me pôs a pensar: e se além de todas as minhas "não conformidades" eu tivesse a pele dele, como seria? O olhar do mundo não seria ainda mais inquisidor comigo? O humor muitas vezes foi a saída encontrada por ele, por mim e por tantas outras peles em caleidoscópicas circunstâncias. Na pele dele pude enxergar com olhos que não são os meus, pude ver além de mim e me encontrar e essa é uma experiência singular. "Na minha pele" é uma proposta de viagem em outra pele e dessa travessia dificilmente não se sairá transformado. Isso não preço!
Sempre que me ponho a escrever,
tenho a intenção de organizar as ideias e entender os sentimentos. No papel, na
tela, no gravador (mais raramente, quando da urgência de pauta inexistente),
faço uma leitura mais eficiente de mim mesma e das várias situações que a vida,
que o mundo, que o que vem de fora me traz. Toda vez que torno público um
texto, eu o faço da perspectiva da leitora. Publicar, nesse caso, é a partilha das
minhas leituras de mundo.
Disponível em Pixabay
Quando divido posicionamentos
políticos, idas a peças de teatro, visitas a jardins, entre ouras coisas, eu o
faço não da ótica de especialista, que não sou, mas do ângulo da observadora e,
vezes, personagem que sou.
Considero cada postagem no
facebook ou no blog como uma garrafa lançada ao mar. Um dia a gente escreve um
recado, junta a ele uma imagem, um vídeo, ou seja lá o que for, e de casa, do
jardim, da escola, do bar, da praça ou de qualquer outro lugar, lança no oceano
que é a grande rede de informações que nos conecta. Ah, se eu soubesse desenhar!
Faria uma ilustração. No fim das contas, parafraseando o poeta, tenho apenas
meu ponto de vista e o sentimento do mundo.
Há garrafas que viajam muito e
outras que encalham logo ali na frente. Há aquelas que chegam a locais dos
quais jamais tinha ouvido falar e corro para a pesquisa. Umas vezes há interação,
outras não. Mundo mundo vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo, além de não
ser uma solução, não seria eu mesma, é claro.
Às vezes escrevo algo de que
gosto imensamente e a garrafa quase não segue adiante. Outras vezes ponho na
garrafa um inseguro lembrete e aquilo viaja longe e em algumas ocasiões produz
até respostas. O mundo das garrafas e dos recados dentro delas, para mim, configura
um denso mistério. É imprevisível e fascinante também. Hoje, por exemplo, sem
mais nem meio mais, conforme vou escrevendo, vou me lembrando de Drummond e
pedacinhos de alguns de seus poemas vão surgindo naturalmente. Fico tentando
entender.
Agora, penso em “Mãos dadas”.
Nessa questão de não nos afastarmos muito do presente, de seguirmos de mãos
dadas num tempo taciturno, mas cheio de esperança. Talvez sejam as notícias de
bombas, de guerras, de refugiados, da degradação dos recursos naturais. Talvez
seja a face de um Brasil tão sombrio. O fato é que a poesia drummondiana está pulsando
mais forte em meus pensamentos hoje, ela é quase um sentimento.
É preciso salvar o país. Salvar?!
Quem poderá?! Penso que seja preciso acreditar no país e fazer parte dele e
lutar e não o entregar a quem não o ama e simplesmente deseja fazer dele uma
reserva de recursos naturais. Tudo isso assim sem vírgulas mesmo. É preciso nos
descobrir partes de um todo – isso é tão óbvio, mas inúmeras vezes agimos como
se não soubéssemos. Tudo isso parte de uma coisa só, de uma só proposta. O que
anda me trazendo o poeta, descubro enquanto escrevo, é o fato de não podemos
tudo ignorar como inocentes que não somos. Já cantamos o medo muitas vezes.
Aqui e no mundo todo.
A tarde cai dourada e lenta. É
domingo. O vinho está na mesa. O pão. O queijo. O sabor. O sabiá anuncia
incessantemente que o sol está se pondo, é quase hora de dormir. A calmaria lá
fora confronta as inquietações aqui dentro. É um tempo complicado esse nosso. É
preciso conjugar a esperança.
A lua se anuncia. Está bonita. É
hora de deixar o recado partir, que flua, que viaje, que encontre. São palavras
ao mar, escritas nas ondas.
Cabelos brancos. Ombros curvados. Passo feminino e lento. Pelas lentes octogenárias o mundo parece um canto simples. Rotina. Rudimentar.Trivial. Deslumbramento. Riso compreensível diante de juvenis afobações. Lugar de aprendizado é trajeto e trajeto é sempre.
Florescendo aqui em casa
O vento muda de uma hora para outra. Muda o tempo, a direção. A paisagem muda, vezes emudece, vezes soa. A vida é um tilintar de movimentos. Na roda viva até a lucidez se esvai. Vívidos delírios de amor intacto. Palpável e utópico. Namora moinhos de vento. Fiéis desejos. Partida entre nuvens confusas de parcial realidade. A vida é só momento.
Se há um
programa de que gosto nessa vida é cinema. Sozinha ou acompanhada, na primeira
ou na última sessão, a telona me fascina e, na imensa maioria das vezes, me
proporciona uma viagem. Foi o que aconteceu vendo o novo filme de Selton
Mello, livremente inspirado no livro “Um pai de cinema”, do chileno Antônio
Skármeta. O longa traz uma gama de questões fundamentais abordadas de maneira
cuidadosa e delicada e merece destaque também pela fotografia que revela, além
de belezas naturais do sul do Brasil, um longo e trabalhoso estudo.
Decidir nem sempre é fácil. Pode gerar arrependimentos e às vezes gera. Muitas vezes
se quer mudar o presente, mas o peso do passado parece nos impedir. Muitas
vezes não podemos transpô-lo sozinhos, precisamos do amor, da generosidade, do
impulso e da torcida daqueles que nos têm afeto.
A história do rapaz que sente a
ausência de seu pai, um homem que deixa a família e vai para a França e o
aprofundamento de seus laços afetivos com a mãe, enquanto se inicia em sua
profissão e descobre seu primeiro amor é envolvente e cheia de nuances para a
além do drama principal.
Ali naquela poltrona de cinema,
vi a vida passar diante dos olhos viajando numa locomotiva, perfeita metáfora
para os caminhos que a gente segue e para tudo aquilo que pode nos tirar dos
trilhos. Vezes, uma simples decisão pode ser a mudança de uma vida inteira, de um
jeito de olhar a estrada, da mudança de hábitos para a aquisição de cuidados
antes sequer considerados. Todo mundo tem em sua história um divisor de águas,
um fato que o modificou profundamente e para a vida toda. Às vezes, numa
descomprometida conversa com um maquinista, esse fato vem à tona, sobressai. A
vida é mesmo diálogos e trajeto.
Sentada na poltrona do cinema,
entrando e saindo daquele trem e pensando nos deslizes que têm consequências
permanentes e que modificam significativamente as nossas vidas, fui me deixando
encantar por Tony Terranova, por suas coragens e fraquezas. Entre uma viagem e
outra, entre uma sessão de cinema e outra ali na tela, o filme foi se revelando
e se tornando mais próximo.
Quem de nós não apostou na pessoa
errada? Quem de nós não viu um amigo onde havia somente interesse próprio e manipulação da verdade? Quem
de nós não se deixou seduzir apenas pela beleza? Quem de nós não teve na vida
uma grande decepção? Decepções podem, em muita medida, ser o impulso que
faltava para uma tomada de decisão, a superação necessária de um medo para a
revelação de doloridas verdades. Decepcionar-se pode ser o caminho para o ponto de
vista que faltava, para que se tivesse noção do todo em uma situação. Embora provoque dor e demande o esforço da recuperação, pode
ser a retirada da árvore que, tombada na estrada, impede-nos de avançar.
O drama da ausência do pai. O
drama da falta de uma razão, de uma explicação. O drama de saber que qualquer
dúvida pode ser pior do que a mais dura certeza, uma vez que a dúvida pode fazer paralisar, é
sensivelmente retratado na tela. E porque o drama não é a única face da vida, a
veia cômica surge para fazer mais leves os momentos dramáticos da caminhada.
Cabem sorrisos e tristezas e revisão de posicionamentos diante dos dramas
humanos apresentados.
E como é importante tentar colher
a verdade na fonte e não apenas no discurso de terceiros. O controle emocional para
permitir-se a descoberta é uma arte custosa, mas pode trazer benefícios àqueles
que em lugar da pressa têm bons propósitos e firmes objetivos. Nada disso é
fácil nem indolor, mas gera crescimento e, algumas vezes, o resgate da
esperança. Nem sempre a situação é tão feia quanto se vê num primeiro olhar.
O filme fala de amor e de cobiça o tempo todo. Assim é a história, assim é a vida. O amor, sem dúvida, é a parte
ensolarada do filme. E não será da vida? O despertar do bem querer e do afeto
entre os jovens, a descoberta do sexo, a alegria provocada por tais revelações.
Tudo é luz. Uma luz pálida e repleta de nostalgia, como convém a qualquer
lembrança. Amor de pares. Amor de pai. Amor de mãe. Amor de filho. Acerto,
erro, caminhada e o contraste com um
tempo que já vai longe e que também tinha hábitos nada saudáveis e que
confrontam os dias atuais. Era muito cigarro, pouco cinto de segurança e nada
de capacetes. Era assim mesmo. É... algumas coisas mudam para melhor.
Selton também aparece na tela e
como não observar o ator talentoso, o diretor sensível e competente e o homem
maduro que se tornou? Está belo e forte. Sua presença é enriquecedora e
marcante, como acontece com aqueles que se encontram no auge de sua carreira.
O filme acabou. Eu e algumas
outras pessoas permanecemos sentados, enquanto numa tela escura subiam letrinhas
e mais letrinhas ao som de uma melíflua e apaziguadora canção francesa. Não
havia pressa em deixar o cinema. Indubitavelmente tínhamos ganhado duas horas
em nossas vidas.
A arte existe porque a realidade não basta. (Ferreira Gullart)
Não é segredo pra ninguém que muitos estudiosos e escritores ressaltam o poder
da arte e da beleza, dentre outras coisas, para a promoção e a manutenção da saúde
mental e emocional daqueles que, de algum modo, a elas se entregam. A arte
salva nossas sensibilidades. Neste momento particular de dificuldade por que
todos nós passamos, acho que precisamos de terapia intensiva. Quanto mais arte
melhor. Tenho aceitado a prescrição daqueles caras. São doses de poesia,
crônica, romance, pintura, música, dança, teatro e muito mais. Além disso, muita
beleza natural, deliciosas conversas e a presença de gente cujo afeto aquece a
alma e o coração são elementos fundamentais.
Dia desses,
fui ao Theatro Dom Pedro em companhia de familiares e amigos assistir a uma
montagem de “Sonho de uma noite de verão”, de Shakespeare.
Foi verdadeiramente uma noite de sonhos. A montagem feita pela Companhia
Arteira de Nova Friburgo transportou-nos à fantasia e trouxe-nos o delicioso
contato com nossa criança interior, através da mescla entre humanos e fantoches
no palco. A perfeição dos movimentos dos bonecos, a delicadeza do cenário e da
música e uma primorosa atuação nos colocaram, por mais de uma hora, em contato
com o sublime.
Foi uma
grande sacada da trupe fazer os fantoches representarem os personagens humanos,
numa linda metáfora para a interferência dos seres élficos em seus destinos. Coube, então, aos atores a representação dos seres elementais. As
trapalhadas de Puck, numa esplêndida e envolvente atuação de Cássio Campos, levaram-nos
às gargalhadas, enquanto a riqueza musical foi, sem dúvida, uma facilitadora
para sonhássemos regidos pela maestria de Shakespeare. Antes que provássemos da
flor encantada, estávamos todos apaixonados.
Dia do espetáculo - foto da Companhia Arteira
Floresta.
Desejo. Sonho. Conflitos. Elfos. Fadas. Vaidade. Manipulação. Dúvida. Destino. Amor. Tudo ali sensivelmente
retratado numa viagem fantástica e poética para a posterior reflexão sobre os grandes
dramas da humanidade. O teatro é mesmo um espaço
privilegiado. Não raras vezes nos tira da apatia e nos põe representados no
palco ou em contato com algo que desconhecíamos em nós. Pode nos refletir por dentro e por fora, tão
necessário susto. A arte tem essa extraordinária capacidade de nos abismar,
algumas vezes de maneira muito leve e lúdica como nessa montagem. Sonhos,
gargalhadas, talento, criatividade e beleza: tudo num só espetáculo. O
teatro pode ser bálsamo para as agruras da vida e um portal escancarado para um
mundo além do físico. De fato, viver só de realidade não basta.
SOBRE O ESPETÁCULO:
Gênero: Comédia
Duração: 90 minutos
Direção: Gabriela Ribas Supervisão de direção para manipulação de bonecos: Marise Nogueira Trilha sonora original e direção musical: Diogo Rebel Elenco: Cacá Pitrez, Cássio Campos, Catherine Bom, Gabriela Ribas, Gero Band, Jerônimo Nunes, Maria José Silva, Nathália Newlands e Silvia araújo Cenografia: Silvia Araújo
Saí de casa inocentemente para
assistir a um show de Caetano Veloso. Tudo estava muito tranquilo até aquele
moço elegante trajado de azul, no mais puro estilo um banquinho e um violão,
começar a cantar. Nos primeiros acordes de Luz do sol, entrei em contato com um
tempo que passou. Parece que fiz uma conexão com a minha adolescência e com o
início da minha vida adulta, com os anos 80, com a conquista de direitos e a
valorização da vontade popular.
Adolesci num tempo de luz, de
abertura, de iluminação sobre o que tinham sido anos soturnos no Brasil. Embora
não tivesse engajamento nos movimentos que vinham lutando pelas eleições
diretas, era impossível não participar disso de alguma maneira. Os jovens e os
nem tão jovens estavam nas ruas e Coração de estudante, de Milton Nascimento,
era quase um hino. Era cantada nas escolas, nos bares, nas ruas. Tinha um ar de
acalanto, de energia, de alegria e, sobretudo, de esperança. Acompanhei a
eleição indireta, a morte de Tancredo, a inflação a galope. No meu primeiro ano
de faculdade, só se falava nas eleições diretas. Eu me lembro das campanhas eleitorais, da
desinterdição das urnas depois de tantos anos em que estiveram lacradas. Era
uma energia boa de um povo que começava a tomar as rédeas do processo
democrático de seu país novamente. Era a energia carregada da esperança de um
futuro melhor. Da construção de um país bom e justo para a juventude criar seus
filhos e a maturidade ver crescerem seus netos.
Quando houve o impeachment de
Collor de Mello, já acompanhei mais de perto. Vi brotarem os cara-pintadas aqui
e ali e se tornarem atuantes em todo o país, me recordo bem, o som das ruas era
uníssono. A grande maioria da população já não desejava aquele presidente, tinha
pesadelos com Zélia Cardoso de Mello, a ministra que, no primeiro momento do
governo, confiscou a poupança de uma parte significativa da população
brasileira. Não foram só aqueles que tinham alguma reserva que ficaram com suas
contas bloqueadas. Houve gente que tinha vendido um imóvel para comprar outro, por exemplo, e
que diante do confisco ficou sem ter onde morar. Houve dor, houve suicídios, a
coisa não foi brincadeira. Quando o presidente foi deposto, havia o sentimento
da maioria de que isso havia sido justo.
Desse modo, tudo o que vivi na
adolescência e juventude foi uma escalada ascendente de liberdade e de
conquistas. Minha geração aprendeu a encher o peito e a boca e sacar as leis
afirmando que tinha direitos. Eu acreditei. Cresci nessa onda e na ilusão de
que os direitos, uma vez conquistados, estavam garantidos, que era pra frente
que se andava, que havia direitos adquiridos. Sendo assim, os recentes
acontecimentos no Brasil têm sido, mais do que um soco no estômago (ou muitos
socos, sinto-me golpeada todos os dias), um momento de reflexão e da
constatação de que direitos são apenas circunstanciais e que, para a sua
manutenção, temos que cuidar deles o tempo todo. Do contrário, de um minuto
para o outro, entre acordos e conluios, se esvaem e todos perdem.
Tá certo, a gente vê aqui e ali
mundo afora as ameaças à democracia diante de nós na TV, direitos ruindo nos mais diversos lugares, mas a televisão é tão
asséptica que tem qualquer coisa de ficção, de distanciamento, de nos informar
como se estivéssemos todos longe daquele ponto. A TV nos ilude e nos adormece
todos os dias. Se não fosse assim, como seria possível ter um aparelho desses
na sala de jantar? Como comer diante das notícias e imagens de guerras e de mutilações?
Eu acompanhava as democracias ameaçadas a distância, mas não via o risco aqui
tão perto.
A realidade começou, nesse
sentido, a me dar uns solavancos quando, logo depois da apuração dos votos nas
eleições para presidente em 2014, alguns inconformados com o resultado das
urnas começaram a pedir o impeachment da presidente eleita e tais protestos
começaram a ganhar força com a participação de alguns políticos brasileiros. A
oposição naquele momento começava a mostrar a sua face predadora em prol de um
resultado e em detrimento da valorização da nação brasileira e do processo
democrático, fomentando a divisão nascida na disputa eleitoral.
Quando Trump venceu as eleições
dos EUA eu tive muita inveja dos americanos, muita. Não desse inacreditável resultado.Tive inveja da postura
responsável de sua oposição. Da fala de Hillary Clinton que, diante da derrota,
que nem ocorreu nas urnas, não perdeu a clareza de que o país era maior que seu
umbigo e, portanto, conclamou os americanos à união pelo crescimento de todos.
No Brasil, apesar do discurso do candidato derrotado nas urnas, não tivemos uma
oposição responsável. Faltou à oposição, desde as últimas eleições, a grandeza de perceber
o Brasil como um país. Ao contrário disso, o que houve foi o estímulo
irresponsável e em causa própria para que seus eleitores fossem às ruas pedir o
impeachment de uma presidente democraticamente eleita, no momento seguinte ao
resultado do pleito. Faz parte do processo democrático aprender a perder. Há
que se ter grandeza para continuar lutando por seus objetivos sem sabotar o
processo legítimo das urnas.
A oposição sabotou o quanto pôde
um governo legítimo. Foram pautas e mais pautas travadas no Congresso Nacional
para levar o governo ao insucesso. O país ficou ingovernável. A crise econômica
foi agravada. Um presidente, haja vista os “acordos e mais acordos” que têm
sido feitos pelo presidente Temer, não pode governar sozinho. Mais tarde,
diante das gravações apresentadas pela Operação Lava Jato, ficou claro nos
diálogos de Sérgio Machado com Romero Jucá, que o medo, o pavor era de que aquela
operação levasse boa parte deles ao naufrágio de suas carreiras políticas
construídas nem sempre na legalidade. Desse modo, foram articuladas alianças e
mais alianças para que salvassem a própria pele. O que fez a oposição nesse
tempo todo? É como se ela, como dizem, tivesse descarrilhado o trem para depois
“salvar” os feridos. Houve vítimas fatais? Para vítimas fatais cuidados médicos
não resolvem coisa alguma. A oposição estimulou e promoveu o impeachment a um preço
altíssimo para salvar sua própria pele. Sem falar naqueles que mudaram de lado
pelo mesmo motivo.
Para agravar a crise vivida pelo
governo Dilma naquela ocasião, faltou sensibilidade ao referido governo para
lidar com uma parcela significativa da população que não o apoiava e que foi às
ruas se manifestar. As medidas tomadas
pelo governo estabelecido ajudaram a pôr gasolina no fogo e a incendiar as
possibilidades de reversão daquela situação. Àquela altura os movimentos já
tinham certa autonomia e repudiavam alguns dos políticos que o incentivaram,
chamando-os, inclusive, de oportunistas. Havia muitos manifestantes que defendiam
a não participação de políticos naqueles protestos. Os movimentos, naquele
momento, já tinham em grande parte outra identidade. No domingo anterior à
nomeação de Lula como Ministro da Casa Civil, os movimentos de rua tinham
levado três milhões de pessoas às ruas num protesto contra o governo e contra a
possível nomeação do ex-presidente para um cargo ministerial. Não se ignora a
voz de três milhões de pessoas impunemente. A nomeação dele para a casa civil
soou, até para muitos que apoiavam o governo, como um desrespeito às vozes de
uma parte significativa da população. Ao ignorar o movimento, o governo ajudou
a jogar uma pá de cal sobre as possibilidades de superação da crise política em
que se encontrava.
A realidade me esbofeteou pra
valer mesmo naquela sessão de domingo da Câmara de Deputados que aprovou o
prosseguimento do processo de impeachment da presidente. Olhava incrédula para
a postura e ficava atônita com as falas de grande parte daqueles parlamentares.
Pensava na gravidade do que aquilo significava para além daquele resultado, para
o fato de que aqueles senhores e aquelas senhoras ocupavam cargos
representativos e, portanto, representavam uma parcela da população. Suas
condutas questionáveis naquele dia e nos dias que se seguiram àquela sessão
colocavam em xeque o nosso congresso. Ética?! Decoro?! Nada disso parecia
existir por ali. Passei, a partir daí, a olhar com mais atenção o número
expressivo e crescente de votos em branco e nulos , bem como o enorme número de
abstenções nos processos eleitorais para os mais diversos cargos políticos de
nosso país. Nosso sistema eleitoral desconsidera esses números para os
resultados, no entanto, diante do quantitativo de pessoas que representam,
devíamos repensá-lo. Não basta criticar os que agem assim, tampouco rotulá-los
de isentões. Tais votos também manifestam uma mensagem, a de que aqueles
eleitores não concordam que nenhum dos candidatos inscritos os representem e
isso é coisa à beça. Para muitos, deixar
de votar é uma decisão amadurecida e demasiadamente difícil. Jamais votei nulo
ou em branco nem me abstive das votações, mas entendo quem o faz. É preciso
pensar nisso com a seriedade que o assunto merece.
Depois de passar pela Câmara dos Deputados,
o Senado brasileiro aprovou o impeachment, que
se consolidou como um golpe quando, dois dias depois de ser votado, o mesmo Senado sancionou uma lei que flexibilizava
as regras para a abertura dos créditos suplementares sem a necessidade de
autorização pelo Congresso Nacional. A partir daquela data, então, estavam
legalizadas as “pedaladas fiscais”, que foram o principal argumento para o
pedido do impeachment presidencial. Ou seja, depuseram a presidente por uma
ilegalidade que dois dias depois avaliaram como legal. Deram nó em pingo de
éter bem na nossa frente. Ao contrário do que ocorrera no impeachment de
Collor, a voz das ruas não era uníssona. Novamente havia sido desconsiderada
uma parte significativa da população.
Pouco mais de um ano do ocorrido,
o que temos visto é de abalar as estruturas das nossas esperanças. Temos um
presidente que foi gravado em uma conversa comprometedora com o empresário e
delator Joesley Batista em que, o mínimo
que se pode pensar, é que o presidente tenha prevaricado. Acusado pela
Procuradoria Geral da União de crime de corrupção passiva, esse mesmo
presidente, ao invés de tomar atitudes coerentes com a lisura e a transparência
que o exercício de sua função exigem, toma providências no sentido de
dificultar a visão da entrada do Palácio do Jaburu e estabelece o uso de
mecanismos para dificultar a gravação de suas conversas, como é o caso da
instalação do misturador de vozes. Coisa
que mais se aproxima de uma confissão de culpa do que do desejo de provar que
não a tem. Sua manutenção na presidência tem se dado por manobras e mais
manobras políticas que, se não forem ilegais, certamente são imorais. A crise
econômica e financeira continua instalada. Houve perdas de direitos
trabalhistas. Universidades públicas agonizando. O aumento do número de pessoas em situação de rua é visível. O
aumento da violência e da criminalidade é sentido pela população até fora dos
grandes centros. E ninguém se manifesta. Bem, isso é o que dizem. Tenho visto, pelo
país afora, gritos e mais gritos de “Fora, Temer!” E esse coro está crescendo. Basta
que haja uma reunião para que tal apelo surja naturalmente. Se os gritos não
ganharam as ruas, não quer dizer que eles não existam, é importante que isso
fique claro.
Por que os gritos não ganham as
ruas? Há vários motivos, mas sobre dois deles eu gostaria de falar. Temos sido sistematicamente expostos ao medo.
Medo de que a economia desande e que o país vá à bancarrota, como se o desacerto
no campo econômico não estivesse intimamente ligado aos inúmeros processos de
gestão fraudulenta, de rios e rios de propina de que nos dá conta o Ministério
Público. É como se falassem para nós que os gestores não têm culpa, mas nós
podemos pôr o país a perder por querer que o presidente responda o processo por
corrupção passiva no Supremo Tribunal Federal. Há uma espécie de ameaça de que
teremos responsabilidade pelo fracasso da economia se houver uma mudança. “Ruim
com ele, pior sem ele”, nos avisam alguns a todo o tempo. Além disso, a pós-verdade,
sem entrarmos na discussão filosófica se está sendo usada no sentido real ou
equivocado do termo, mas pensando no significado que tem assumido no contexto atual,
tem ajudado a nos confundir, valorizando mais a versão do fato do que o fato
ocorrido em si. Dando mais crédito à versão do fato do que a verdade em si. Os
discursos de alguns políticos são completa e propositada distorção dos fatos. Precisamos
estar atentos a isso. Temos o dever cívico
de não nos deixar enganar. Concordar que um presidente não seja julgado por um
crime do qual se tem provas é o mesmo que assegurar para toda a classe política
que a lei não pode atingi-los. É
endossar a impunidade. A população não
foi para a rua? Há muitos meios de se manifestar, ir às ruas não é o único. É
fundamental fazer uso deles.
E o que tem Caetano a ver com
tudo isso? Passei boa parte da vida adulta vendo uma escalada crescente de
conquistas e direitos, tenho estado dolorida vendo essas conquistas descendo
ladeira a baixo. Constatar toda a fragilidade desses direitos tem sido um duro
aprendizado. Olhar Caetano ali no palco, desfilando sua poesia ante meus olhos,
lembrar que ele foi um preso político, que foi exilado; ouvir canções compostas
em 1968; constatar as letras vivas e mordazes de algumas de suas canções e não
pensar na situação atual do país, no estado de coisas que estamos vivendo, no
avizinhamento de um tempo ainda mais sombrio é simplesmente impossível. É inevitável linkar o Brasil atual aos podres poderes de Caetano. Naquele
show, a adulta dolorida que estou se encontrou com a jovem esperançosa que eu fui
e ratificou minha convicção de que é preciso resistir. Resistir com amor, com
poesia, com dança, com música, com garra, com arte, com beleza para manter a
saúde emocional. Resistir fazendo uso dos meios disponíveis para me manifestar.
Resistir buscando informações em muitas e muitas fontes para não ser
catequizada pelos manipuladores da informação. Sim, quem se propõe a ouvir mais do mesmo o
tempo todo, pode acabar com sua capacidade de análise comprometida. É preciso ser um leitor plural, lendo
e ouvindo aqueles que concordam conosco e também aqueles que discordam de nós. É
preciso crescer e exercitar o respeito, prestar muita atenção aos fatos e lutar
pelo que se acredita.
Enquanto boa parte da classe
política do nosso país exerce seus podres poderes, estamos nos perdendo ao dividir nossas forças. Enquanto eles nos vencem, saqueiam e
oprimem, nos desgastamos em confrontos nas ruas ou em redes sociais. A polarização tem facilitado muito a vida deles. Até
quando nos conformaremos com ridículos tiranos?