sábado, 27 de outubro de 2018

A você que não se vê em risco


De certa forma, a luta de hoje me lembra a luta contra a Aids lá do início da epidemia. Explico-me: como as pessoas não se enxergavam em risco, visto que inicialmente a doença era atribuída a homossexuais, usuários de drogas injetáveis e profissionais do sexo, não tomaram atitudes para a sua prevenção. Resultado: a epidemia se espalhou entre homens, mulheres e tantas outras categorias. Hoje a Aids é uma doença que atinge de forma igual todas as categorias e todas as classes sociais. Felizmente, hoje a Aids é uma doença crônica e contra ela há medicamentos eficazes. A Aids tem tratamento.
A luta de hoje é contra a ascensão do fascismo. Muita gente não enxerga o risco que está correndo e, por isso, não toma um posicionamento, uma atitude a favor da Democracia e contra a epidemia fascista. Hoje você não é negro, não é gay, não é artista, não é professor, mas você não se encerra em você. Ou você é tudo ou parte disso, mas não crê que o fascismo o esteja rondando.
Você tem filhos, tem netos, tem sobrinhos, tem amigos. Eles podem ser negros. Seus filhos/sobrinhos/netos podem se apaixonar por negros. Você pode ter descendentes negros/seus amigos podem ter filhos negros. Alguns de seus amigos são negros, alguns dos filhos dos seus amigos também. Apesar da educação heteronormativa que receberá, seu filho pode ser gay (quantos filhos de casais hétero são), sua filha pode ser lésbica, trans, travesti. Seus filhos/sobrinhos/amigos são/podem ser artistas e professores, e estarem impedidos do exercício de sua profissão com Liberdade. Você mesmo pode ser atingido por possuir qualquer uma dessas qualidades. É  mesmo um mundo, um Brasil de intolerância que você quer pra todos eles, pra todos nós?! É um Brasil de intolerância o que você quer para você?
A campanha do candidato do PSL tem se mostrado inclinada ao fascismo. Quem nos disse isso foi a Justiça brasileira, quando mandou tirar uma faixa antifascismo da fachada da Universidade Federal Fluminense, sob a alegação de que ela feria a campanha de JB. A faixa não fazia qualquer menção a tal candidato que disputa a eleição à Presidência da República. Por que alguém que defendesse essa campanha se incomodaria?
Você já parou pra pensar que, a partir de amanhã, a existência, a liberdade de todas essas pessoas/classes pode estar ameaçada? Você já parou pra pensar que a sua existência pode estar ameaçada também? Ao contrário da Aids, contra o fascismo não há medicamento. O fascismo mata! No entanto, contra a ascensão do fascismo no Brasil há uma possibilidade de vacina: o voto na Democracia. Você está mesmo decidido a se calar diante disso?! Ou o que é pior: você, que é da paz e do bem, está mesmo decidido a votar num candidato fascista?!
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Leia a matéria sobre a retirada da faixa:
https://oglobo.globo.com/brasil/juiza-eleitoral-determina-retirada-de-faixa-uff-antifascista-de-universidade-23186076 


O Brasil está um país bipolar


A mim me custa ver a cegueira que acomete a justiça brasileira. Não pelo fato da imparcialidade, o que justificaria a venda nos olhos, embora não justificasse cegueira, já que há muitas maneiras de ler o mundo, mas pelo fato de ela ainda não ter percebido/lido/entendido que, se as instituições estão fortes e se esse discurso de ódio não atinge a justiça e os magistrados, ele atinge em cheio a população do país.
Imagem disponível no Pisabay
A justiça brasileira ainda não viu que uma parte imensa da população está absolutamente dividida entre a depressão/ansiedade e a euforia. Uma parte está horrorizada com o discurso de ódio proferido pelo candidato à Presidência da República Jair Bolsonaro e outra parte está eufórica pelo mesmo motivo e, por isso, tem extrapolado em medida muita os limites da educação e da razoabilidade. A todo o momento, os consultórios de psicologia têm recebido pacientes deprimidos, ansiosos, apáticos, abatidos.
Há, ainda, outras partes do todo brasileiro que não se encaixam na majoritária bipolaridade. Aqueles que estão vendo a grave situação por que passa o Brasil, que percebem os efeitos negativos daquilo que se aproxima, que notam e que também sentem o impacto violento da onda de ódio em que quase a totalidade da população está mergulhada, não estão deprimidos nem eufóricos, contudo tomados por uma tristeza lancinante. Estão permanentemente em estado de dor.
Há os que percebem e estão paralisados de medo, tentando decidir entre dois grandes medos que sentem ou querendo se abster de decidir. Há os que se abstêm de decidir sem medo.
Há os que não percebem a real gravidade dos fatos que se anunciam, haja vista que não foram atingidos pelo impacto das notícias da explosão de agressividade que se desprendeu das urnas, logo após o resultado do primeiro turno ter sido anunciado. É inegável que houve os ataques violentos por todo Brasil, resultando até em mortes de algumas pessoas que não votaram em Bolsonaro. Homossexuais foram agredidos. Mulheres têm sido constrangidas. Para alguns, nada disso parece fazer sentido e para outros não parece incomodar.
Há muitos e diversos motivos para que as pessoas não percebam seu entorno e não façam a leitura correta dos acontecimentos, o analfabetismo funcional de que se tanto fala pode ser uma dessas razões, mas não será a única. O fato é que não compreender o discurso dos candidatos que disputam um pleito, este especialmente, é realmente um grande perigo. Vale dizer que, de modo especial, não compreender o discurso do candidato do PSL pode ser um risco um tanto acrescido. A fé cega em um líder é coisa que impede os cidadãos de autonomamente questionarem qualquer “verdade” dita por seu, nesse caso não líder, mas ídolo é outro fator a ser apontado. Há também a manipulação pela fé religiosa por meio de lideranças que são notoriamente figuras sem compromisso com a ética ou  com o bem- estar de seus fiéis (notem bem: fiéis). Há outras possibilidades. Não vou enumerá-las todas e nem saberia esgotá-las.
Há, ainda, os eleitores de Bolsonaro que acreditam que o Brasil melhorará sob seu comando e votam nele, simplesmente, por essa razão, são eleitores que prezam o convívio pacífico entre as pessoas. Foi questão de escolha, opinião, preferência. Tudo certo. Ainda que não concorde com a escolha, respeito sobremaneira o direito de eles votarem no candidato que desejarem. Afinal, o respeito às divergências é o cerne do processo democrático.
Há uma infinidade de variedades e matizes que, de forma alguma, compõem a maioria da população. A imensa maioria do povo brasileiro está, como  demonstraram as urnas e têm demonstrado as pesquisas, polarizada. Dentro da maioria eufórica, que é composta por eleitores do candidato que se projeta para a vitória no próximo dia 28 de outubro, há uma fatia de que não consigo precisar a medida nem aproximada que consegue ler o perigo, que concorda com o padrão violento do discurso que tem seguido e que se sente mais e mais empoderada a cada discurso proferido por seu ídolo, por seus correligionários e por alguns de seus apoiadores. É nessa fatia que mora o perigo. É precisamente nela que devemos nos focar nesse momento, tendo em vista que é ela que pode agir violentamente a partir do fortalecimento desse discurso.
A justiça, com a devida vênia, pode até ser cega, mas não pode cerrar os ouvidos aos efeitos de depressão (entre os que fazem oposição ao candidato) e euforia (entre os que o apoiam) que o discurso de ódio do candidato do PSL tem provocado na população.
Quando a justiça não coíbe essas falas, ela passa para a população a sensação de que as está referendando para o mal e para o mal. Não há qualquer efeito positivo em deixar passar essa sensação de normalidade do discurso do candidato do PSL para nenhum brasileiro, quer seja ele de esquerda, de direita, de centro, neutro ou não faça qualquer ideia do que seja isso.
Grafei a palavra justiça com letra minúscula para salientar como uma grande parcela da população, e eu me incluo nela, tem visto a justiça brasileira. Precisamos de uma JUSTIÇA MAIÚSCULA, que nos dê, como cidadãos brasileiros que somos, a sensação da verdadeira Justiça e algum sentimento de segurança. Por ora, o sentimento é desamparo.

domingo, 7 de outubro de 2018

De mãos dadas

Imagem disponível no Pixabay
Sei que muita gente fica incomodada de falar de política, eu entendo. Entendo mesmo. Eu também estou exausta. Exausta! Mas o momento pelo qual estamos passando é grave demais para não falarmos sobre isso. Se nos calamos agora, podemos ser calados amanhã. Nós, nossos amigos, nossos filhos, nossos conhecidos, nossos familiares e tanta gente que nem conhecemos. Isso não é nada bom! Isso é duro demais!
Nossa decisão nas urnas pode significar o fim da livre expressão dos nossos pensamentos e ideais. O risco é real. É bom que tenhamos consciência disso. Vamos falar de política hoje para garantir o nosso direito de falar de amor, de flor, de música, de Arte, de Filosofia, de Sociologia, de religião e tantos outros assuntos amanhã.
Nossa decisão nas urnas (nas urnas, gente! Eu nasci num país em que não se tinha o direito de escolher seu presidente) pode significar o aumento da intolerância, da truculência, da violência. Pode mesmo! Para combater a violência, eu não quero viver num país de justiceiros, eu quero viver num país em que haja Justiça. Eu não quero ter o direito de pegar em armas para me defender. Eu quero ter uma polícia estruturada, equipada, treinada, trabalhando com dignidade por mim, por você, pelo próprio policial. Eu quero investimentos na área de Segurança Pública. Por nós e pelo policial.
A concordância do candidato do PSL com a exibição da sua entrevista exclusiva no mesmo horário do debate da maioria dos outros candidatos à Presidência da República num outro canal de TV, me ajudou a despertar de um transe. Temos sido sequestrados pelo discurso da violência e do ódio. Sequestrados! Ao exibir sua entrevista no mesmo horário do debate dos outros candidatos e estimular a concorrência pela audiência entre os eleitores dele (vamos estourar essa audiência, diziam muitos deles) ele impediu que seus eleitores sequer fossem expostos a falas diferentes das suas. Sequer ouvissem discursos diferentes do seu. Além disso, com essa postura, mandou um recado àqueles que não votam nele de jeito nenhum. O recado de que com eles e para eles não quer nem se dar o trabalho de falar. Ele não está nem aí para os que pensam de modo diferente do dele.
Notem: não estou falando que ele tivesse condições de saúde para participar do debate. Não estou sequer questionando se isso seria possível. Estou falando que, se ele fosse uma pessoa que prezasse a democracia, teria solicitado à emissora que o apoia que a exibição de sua entrevista se desse num horário diferente daquele do debate com os outros candidatos.
Eu quero investimentos na área de Educação. Uma Educação para o exercício da cidadania, coisa que só é possível com a formação de consciência crítica. Eu quero a formação de sujeitos cheios de autonomia e liberdade, para o pleno exercício de suas escolhas. Discursos monocórdicos não primam por produzir reflexões nem sujeitos capazes de ler o mundo. Para isso, é preciso pluralidade. Educar para a Liberdade?! Sim, hoje e sempre! Até para que possam pensar diferente de mim.
Trabalho nas áreas de Educação e da Saúde. Sei bem o tanto de doenças e ferimentos que o discurso intolerante pode produzir. Como agradeço a oportunidade de trabalhar há mais de 20 anos no Programa de DST/Aids e Hepatites B e C! Hoje ele tem outro nome, mas quero usar o nome antigo mesmo. Como cresci vivendo essa luta! Eu quero investimentos em Saúde, inclusive em saúde mental, área tão fundamental e tão desprestigiada no campo da saúde pública.
Não podemos desperdiçar energia travando batalhas de ódio na internet ou em qualquer outro lugar. Violência gera violência. Não podemos ser sequestrados pelo discurso de ódio. Precisamos de atitudes afirmativas em relação às nossas escolhas. Divulgar matérias de conteúdo verdadeiro e produzidas por fontes confiáveis que evidenciem os riscos reais que estamos correndo, pode ser muito mais produtivo do que discutir com o ódio e a violência de alguns dos eleitores daquele candidato nefasto. Observemos que nem todos os seus eleitores são violentos. Há entre eles, inclusive, pessoas que eu amo imensamente e que sequer percebem ou acreditam que defendem um candidato que não exitaria um segundo em nos agredir - pelo menos verbalmente - pelo simples fato de pensarmos de modo diferente do dele. Muitos nem acreditam que ele defende a tortura. Há, claro, aqueles que destilam o ódio. Hoje, especialmente, não podemos perder tempo com eles em discussões inférteis. Discussões inférteis servem apenas para drenar as nossas energias e para nos fazer mal.
Também creio que não podemos morder a isca de combater aqueles que não compactuam com o discurso do candidato do PSL, mas que pensam diferente de nós. Quando atacamos e desrespeitamos os nossos aliados, enfraquecemos a nossa luta. Depois a gente senta, diverge, até briga, se for esse o caso (só pra fazer as pazes depois). Neste momento, não. Sigamos juntos! Sigamos resistindo com amor, determinação, garra e proatividade. Sigamos com atitude e Esperança. O momento é grave. Estamos todos no mesmo barco. Lembremos do poeta: O presente é tão grande. Não nos afastemos. Não nos afastemos muito. Vamos de mãos dadas.

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

E agora, José?

Foto: Marcos Arcoverde/Estadão
E agora, José? O fogo queimou. O tempo ruiu. O Museu sucumbiu. A História se foi. E agora, José? Todos sabiam. Não havia verba. Não havia escape. Desastre anunciado. Foi um crime, José! Crime de abandono. Crime de descaso. Crime de omissão. Crime de inércia. Crime irreparável. Dano inestimável, José! O passado sumiu. O presente é vazio. O futuro apagou. E você, José? Você que se abisma. Você que se dói. Você que chora o patrimônio derramado. Você que perde a memória. Tudo virou cinzas sem que haja a mais remota possibilidade de fênix. José, e agora?

O que dizer diante da constatação da perda de peças tão raras? José, algumas chegaram a Terra antes de Cristo, você sabe o que é isso, não é?! O que fazer diante das cinzas de duzentos anos de trabalho e de dedicação de tantos estudiosos para formar o acervo perdido?  Além das peças, algumas milenares, o trabalho de cada um deles também ficou em medida muita reduzido a pó.

Um rastro de sombra paira sobre nós. Assustam-me os nossos tempos tão cheios de destruição. Jovem ainda, pensava no incêndio da Biblioteca de Alexandria como coisa longínqua no tempo e no espaço, e o lamentava profundamente.  Que conhecimentos estariam ali depositados, eu sempre me perguntei. Tenho vivido coisas que pensava que eram de outro tempo, de nunca mais. Jamais imaginei que um dia um evento desses pudesse acontecer de novo e tão perto, e por razões de escolha, José. Sim, porque diante de tantos alertas feitos - décadas a fio - sobre a necessidade de investimentos e de cuidados com a instituição, não se pode duvidar que deixar aquele patrimônio histórico à deriva foi escolha. Escolheu-se o risco de perdê-lo a tomar as providências necessárias.  Não deu outra: ele se foi! Queimou nas labaredas da irresponsabilidade, da negligência, das verbas desviadas de seus destinos, dos grandes acordos nacionais (que não é de hoje que acontecem). E tudo acabou. E tudo fugiu. O sonho morreu.

O que mais precisaremos perder para que nos encontremos, José? Perdemos todos os dias: nossos monumentos para o descuido, nossos meninos para o tráfico, nossos trabalhadores para o tiro, nossa saúde para as propinas, nossa cultura para o preconceito, nossa liberdade para a falta de segurança pública, nossa dignidade para as negociatas. Perdemos ainda muito mais que isso, José. Perdemos a nossa capacidade de nos abismar. Essa que você ainda tem, José. Nos acostumamos à barbárie, ao grosseiro, ao funesto. Temos vivido muitos choques, mas não damos tratos à dor. Não refletimos sobre ela. Temos nos negado o único aspecto positivo que ela pode nos oferecer: o crescimento. Temos escolhido não sentir. Acusar, terceirizar cem por cento das culpas sem antes darmos aquela olhadinha básica no espelho para descobrir a parte que nos cabe nesse latifúndio.  Pior para nós. O abismo nos espreita. Pra que tanto ódio, José?

Estamos perdidos, encegueirados de uma cegueira que nos inviabiliza todos os demais sentidos: a cegueira voluntária, José. Entramos num processo de autofagia e estamos devorando a nós mesmos em batalhas estéreis nas redes sociais. Estamos presos a elas, José! E temos repetido ininterruptamente esse processo. Diante das grandes tragédias que têm se abatido sobre nós nos últimos tempos, num primeiro momento, abrimos em nós uma fresta de humanidade: sentimos. Depois, ouvem-se vozes em uníssono por um curtíssimo período de tempo, quase um átimo. Passado o susto, que cede cada vez mais rápido, nossa fresta de humanidade não prospera. Tomamo-nos da compulsão de julgar os que são diferentes de nós e os julgamos incansavelmente nos tribunais histéricos e inquisitórios das redes sociais. Temos sido mesquinhos, José. Diante do inominável, ao procurarmos apenas elementos que comprovem nossos posicionamentos políticos e ideológicos, nos apequenamos.  Almejamos ter razão e mais nada. Apontamos culpas, não assumimos as responsabilidades devidas por nossas escolhas. Tudo é motivo para que nos estapeemos em públicas sílabas e exclamações. Aonde nos levará tudo isso, José?

Valter Hugo Mãe, notável escritor português, falou sobre a notícia da destruição do Museu Histórico Nacional. Notícia essa que qualificou de modo muito pertinente como insuportável e como sendo da ordem do absurdo. Em sua declaração de dor, pronunciou uma sentença que me bateu forte porque fez todo sentido pra mim: “fico com a impressão de que o Brasil está em guerra com ele mesmo”. Eu sinto isso, José.

Que leitura é possível fazer nas entrelinhas das cinzas dessa trágica página da História do Brasil? Há muitas leituras possíveis e necessárias. Uma delas pode se dar logo na superfície: eleger quem nos representa tem um custo. Somos corresponsáveis pelas ações daqueles que elegemos, ainda que indiretamente. Temos elegido políticos e mais políticos que sequer conseguem vislumbrar o valor de um museu como o Museu Histórico Nacional. Precisamos mudar isso. Outra leitura urgente e fundamental é que há outros museus em situação similar e que ainda há tempo para salvá-los. É preciso agir para isso.

É muito simbólico que, numa época em que se atribui tanto valor às imagens e fotografias, da História nos restem apenas as fotos, os flagrantes do instante. Miragens de uma matéria agora inacessível e impalpável. É hora de aprendermos com o presente, para não comprometermos ainda mais o futuro. Até aqui, estamos nos destruindo, José.

José, até quando?
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Observação:
Diante da dureza dos últimos acontecimentos, fui buscar poesia, fui buscar Drummond. Especialmente o poema "José", escrito numa época de guerra e trazendo um José resiliente, que não morre e marcha, ainda que não se saiba para onde. Eu quero ter esperança, José.

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Em cada esquina

Imagem disponível no Pixabay
Chego a casa. Ligo a TV. Assisto ao telejornal. Dentre as notícias disparadas à queima-roupa vêm o tiro, a morte, a dor: mais uma mulher assassinada por aquele que deveria ser seu companheiro, mais uma exterminada pelo ex-namorado, mais uma é perseguida e morta pelo noivo. As cenas se repetem dia após dia e os motivos, no mais das vezes, são variações sobre os mesmos - e vis - tons: ciúme, disputas de bens, não conformação com um iminente término de relação. Tapas, socos, pontapés, empurrões, tiros: mais uma família marcada pelo feminicídio. Mais uma mulher é violentamente expulsa da vida porque não se enquadra dentro dos padrões, dos desejos ou do roteiro traçado por outra pessoa.

São advogadas, corretoras, policiais, donas de casa, moradoras de rua. A violência contra a mulher não segue castas, é múltipla, plural e generalizada, ainda que não seja tão democraticamente noticiada pelos meios de comunicação. O tapa, o soco, o tiro disparado na noticia é apenas um átimo daquilo que realmente acontece em nosso país que, segundo dados da Organização Mundial de Saúde, tem a quinta maior taxa de feminicídios do mundo.

Os disparos nas notícias me atingem. Atingem cada um de nós, quer sejamos ou não conscientes disso. Atingem, machucam e ferem. Eles são a prova inequívoca de que somos parte de uma sociedade violenta e, mais que isso, é particularmente violenta em relação à mulher. Acendeu a luz vermelha: nossas mulheres – filhas, irmãs, mães, amigas, colegas, vizinhas, conhecidas – podem não estar seguras em suas casas. A violência contra a mulher parece lá, mas é aqui. Ela está muito mais perto do que se imagina e nos espreita em cada esquina. É bom que estejamos atentos.

Diante desse contexto, é doloroso constatar que, em face de um discurso social cristalizado: “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”, tanta gente se deixe em paz em relação a não denunciar casos de violência contra a mulher. E é igualmente dolorido notar que algumas dessas pessoas assépticas que não metem a colher na relação marital dos outros, vêm a público e em redes sociais meter o malho no comportamento das vítimas, num discurso que as desqualificam e culpabilizam. Culpabilizar a vítima é fortalecer o agressor. É dar poder a ele. É legitimar seu ato. É dar alimento à violência e ajudar a encorpá-la. Culpabilizar a vítima é também um modo de tornar-se violento.

Culpar pode também ser um atalho para se ver livre de ter que pensar sobre o problema. É, eu sei, este é um assunto duro e indigesto. Eu sei que é mais fácil empurrar pra lá, pra longe, pra amanhã, pra depois. É mais fácil, mas não ajuda nem resolve. O silêncio só favorece os ciclos de violência. E, vamos combinar, nenhum de nós quer viver em um mundo violento.

Sempre que paro para pensar sobre esse assunto, penso naquilo que cada um de nós pode fazer para contribuir para a mudança dessa situação. E, todas as vezes em que penso no ciclo de violência (aliás, você já leu alguma coisa sobre o ciclo da violência doméstica? É uma boa pedida para começar a entendê-la), penso que a primeira atitude que cada um de nós pode ter é o aprimoramento da escuta. Aprender a ouvir sem julgar. Em tempos de gatilhos prontos para o disparo, é bom que aprendamos a ser os ouvidos que amparam, que acreditam e dão credibilidade, que respeitam o tempo de cada um, que dão forças. Nenhuma vítima de violência precisa de dedos apontados atirando culpas sobre ela, ao contrário, necessita de mãos estendidas e ouvidos de acolher. Pode parecer pouco, mas vá por mim, para uma mulher que está sob o jugo da violência, ter apoio é fundamental. Ser ouvido atento pode ser um passo inicial para que essa mulher consiga romper o ciclo de violência.

Eu sei, muita gente pensa: “mas ela está com ele há tanto tempo, deve gostar de apanhar!” Sabe, o ser humano é um ser complexo e a mente humana não é 100% razão. Nem sempre é fácil romper com um agressor. Muitas vezes há questões emocionais e práticas que dificultam a ruptura. Isso não quer dizer que aquela que não consegue se libertar de uma relação violenta, goste de ser agredida. Muitas vezes, a vítima sente-se numa gaiola de portas até abertas, mas não tem asas para voar. Em muitos casos é preciso ajuda profissional para que as asas brotem e ela consiga alçar voo para longe da violência. Não se pode subestimar a dor de um pássaro preso, ainda que as grades sejam impalpáveis para nós e que não consigamos decifrar seu canto.

Não pense que proteger as mulheres significa perseguir os homens. Somos mulheres, filhas, mães, irmãs, amigas, colegas de homens adoráveis e que estão junto de nós nessa batalha contra a violência. Ser mãe de um rapaz fez meus poros mais abertos e expostos para constatar as feridas que um mundo machista pode causar nas almas masculinas também. Educar para o respeito e para a igualdade é parte do bálsamo que pode curar tais ferimentos. A luta não é contra os homens, é contra a violência. Um mundo que respeite as mulheres será um lugar melhor inclusive para os homens.

Eu sei que o medo de denunciar a violência tem a ver com o medo de se expor. Isso é humano e é normal. É preciso sempre tomar as precauções necessárias. Denunciar não combina com uma postura incauta. Acerque-se dos cuidados necessários e, se for preciso, meta a colher, a caneta, o telefone, o e-mail. Se for pra salvar alguém meta até o dedo na luta contra essa imensa e viva ferida social. Antes que o sangue escorra, antes que a voz se cale, antes que o luto se instale, antes que já seja depois.

(Publicado no Diário de Petrópolis em 22/08/2018)
Importante:
Aproxime-se dos diversos modos para denunciar a violência doméstica, acesse este link do Conselho Nacional de Justiça:

sábado, 21 de julho de 2018

Lâmpada maravilhosa


O Natal já havia passado e o Ano Velho ia já quase dobrando o Cabo da Boa Esperança.  Prenúncio de novidade. Ainda que o que houvesse de concretamente novo fosse apenas a mudança de uma data para a outra e a troca do calendário, era tempo de renovar também a fé a confiança em um futuro feliz. A data estabelecida para a troca de presentes já tinha passado, mas o desejo de presentear permanecia. Resolvemos nos encontrar para trocar, mais do que lembranças, o afeto que não nos falta e que nos é sempre muito caro.


Imagem disponível no Pixabay
Ele gosta de cerveja, eu prefiro café. Ele mora pertinho do mar e adora os encantos da serra. Eu moro na serra e me deixo inebriar pela maresia todas as vezes que posso. Somos diferentes, mas temos afinidades, ambos curtimos esse caleidoscópio que formamos. Bora pra uma cafeteria  que nos permite aproximar os paladares e celebrar o bem-querer agradando aos dois. Erguemos um brinde com cerveja e café, e recebi das mãos do meu amigo um pacote quadradinho o qual abri com gratidão e surpresa: era uma lâmpada. Não uma lâmpada qualquer, mas operada por Bluetooth, capaz de tocar músicas e de promover um verdadeiro festival de cores.

Papo em dia, abraço apertado pra recarregar as energias, despedida com gosto de até breve, fui para casa com o presente nas mãos, ainda meio cética de que ele fosse me encantar. Sou do tipo que fica feliz pelo simples fato de receber um mimo, seja lá o que ele for, mas até aquele momento, o objeto em questão era ainda uma luzinha recheada de promessas.

O Ano Novo chegou e com ele a oportunidade de estrear o presente. Experimentar coisas novas, particularmente aquelas que me são dadas por pessoas especiais, só com tempo e em momento apropriado para a devida apreciação. No momento ideal para curtir a novidade, escolhi uma música cheia de significado e zás! Conectei a lâmpada a um abajur e a pus em funcionamento. Para meu espanto, eu curti de imediato. Foi um banho de cores e ritmos, de som, de alegria - proporcionada não só pelo objeto, mas pelo carinho com que ele me foi dado. Foi como se, de repente, a casa toda tivesse sido aspergida pela magia do pó de pirlimpimpim e houvesse ali desembarcado uma nuvem de contentamento. A lâmpada havia trazido um bocado generoso de leveza.  

Resgatei aquela sensação deliciosa de criança que ganha o brinquedo favorito. Por que será que quando a gente cresce se esquece de brincar e das alegrias mais simples? Vibrei e cantei. E, diante do inesperado efeito do presente, a casa se encheu de gargalhadas e novidades: a família adorou a brincadeira. Inclusive a nova construção de sentidos de meu pai: - então, está ouvindo o abajur?! Frase maravilhosa que não passa despercebida àqueles que gostam de brincar com as palavras. É... todos ficamos iluminados. 

Amizade é isto: luz. É um tipo de relação genial, que segura as nossas barras e nos faz sorrir inocentemente, que enfrenta nossas ondas e marés e olha corajosamente as nossas tempestades, que entende os  nossos períodos de silêncio, que se divide conosco e que, às vezes, adivinha o que nos trará aquele tipo de felicidade miudinha, tão essencial para enfrentar as barras do dia a dia.  Música é dessas felicidades pequeninas que podem harmonizar um pouco mais a nossa vida. Ponto pro amigo que me deu o  luminoso presente!

Amizade é lâmpada maravilhosa, cuja magia está contida no amor, no bem-querer, no respeito e na liberdade. Amigo é feito gênio, não daquele tipo que realiza três pedidos, mas que, de perto ou de longe, modifica nossa vida pra melhor e enche a nossa caminhada de sentido.  Tal qual o título da canção que escolhi pra estrear meu presente: é trevo de quatro folhas. Sorte de quem tem.

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Trevo, uma música que me faz lembrar a amizade:
https://www.youtube.com/watch?v=kq1adq4KL90

terça-feira, 10 de julho de 2018

Felicidades bobas

Sou mulher de umas felicidades bobas. A gata brincando com a bolinha colorida espalhando o som do guizo pela casa. O café fresco perfumando o ambiente. A flor, presente de um amigo, brotando no jardim. Propostas de frutas no pé. Sabiás cantando em tardes de verão. O barulho do mar. A maresia. Uma noite de luar. O céu estrelado. O pôr do sol alaranjado no outono. O azul celeste no inverno. O fim de tarde em nuvens cor de rosa. O nascer do sol em qualquer estação.

Às vezes, alegro-me de um armário bem arrumado, de umas roupas distribuídas, de uns papéis rasgados. Outro dia me alegrei de sacar das gavetas as lembranças já sem importância de um relacionamento amoroso que se acabou em angústia. Deitar fora os antigos tesouros de uma relação que se perdeu tem textura semelhante à liberdade. Pode ser uma embalagem de perfume, um invólucro de um buquê de rosas, laços de fitas que vinham em presentes. Reminiscências que eram colecionadas para, de algum modo, fazer presente pessoa tão ausente. Há várias maneiras de constatar que uma falta deixou de ser sentida. Quando as “coleções de afetos” perdem o sentido, estamos diante de uma delas. A coleção se vai e deixa espaço e bem-estar do lado de fora e do lado de dentro também. Fica-se mais leve.

Sem mais nem menos, dia desses, me alegrei de um caldo. Começou simples, assim como quem não quer nada, descascando batatas salsa para pôr na sopa. Alho, cebola, tempero dourado no fundo da panela, alho poró. Creme. Sabor. Filho. Amigos. Gente querida. Mesa cheia. Suspiros denunciando delícia e satisfação. Conversa gostosa. Era pra ser um jantar, foi uma rodada de contentamento.

Num sábado, me alegrei de versos: fui ouvir poesia. No caminho para a Academia, a tarde ensolarada ia se despedindo em tons de vermelho. O sol peneirado pelas folhas das árvores da Praça da Liberdade convidava a fotos, cliquei. Depois de retratar a paisagem e em companhia de um amigo – e ter amigos que topam ouvir poesia em um sábado à tardinha é alegria imensa - perscrutei Bilac. Bingo! Felicidade tripla. Não deu outra: ouvi estrelas.

É bem verdade que nem sempre fui assim. Durante muito tempo, precisei de umas felicidades enormes que, curiosamente, pareciam balões de gás. Eram de extrema dificuldade para enchê-las e torná-las plenas, mas qualquer piquezinho, por menor que fosse, era capaz de esvaziá-las. Ser feliz era um cansaço. Um passeio de montanha russa. Desse sobe e desce não tenho saudade, o que eu quero mesmo é ser cada vez mais boba, dessa bobeira santa e redentora, que me faz feliz.

Felicidade é estar (e deixar-se) em paz.

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Publicado no Jornal Literário Dom Quixote em 02/08/2018, confira no link:
https://drive.google.com/file/d/1Pg5VfeV5wrkwWHECQa_qq6qVwFlncLir/view
Foto 1: Imagem disponível no Pixabay

terça-feira, 19 de junho de 2018

Flagrantes

Fulana vive compartilhando mensagens sobre fé, otimismo, ética, moralidade e religião, mas no emaranhado das redes sociais, acha bonita a homenagem que alguém faz a um ídolo do esporte e não hesita sequer um instante em copiar, colar e postá-la na sua própria linha do tempo assumindo o pequeno texto como se fosse seu.

Beltrano acha bastante criativa a frase de alguém acerca da conjuntura política do país e a sapeca na sua timeline sem mencionar o nome daquela pessoa que a havia escrito. Não é raro vê-lo agindo assim.

Sicrana apropria-se das fotos de um conhecido fotógrafo profissional, corta-lhes as logomarcas e leva aqueles retratos tão cheios da subjetividade alheia a público como se fossem seus.

Um canal de notícias – vejam vocês – copia fotos e texto do mural de alguém e os disponibiliza em sua própria página sem dar crédito nem àquele que redigiu o texto nem ao que clicou as imagens.

Todos recebem e acolhem naturalmente elogios por suas publicações sem que aproveitem a ocasião para citar os seus verdadeiros autores, para desfazer o que poderia ser somente um equívoco ou mesmo fruto de um esquecimento. Nesse exato momento, está escancarada a má fé.

Esses são todos fatos reais que pude contemplar num curto período de tempo nessa imensa passarela chamada Facebook, sem que fosse preciso para isso realizar qualquer tipo de busca ou de pesquisa.

Curiosamente, todos os que agiram desse modo têm algo em comum: divulgam matérias, frases, imagens, memes e coisa e tal criticando a falta de ética na política, na administração pública, no Brasil. Contudo, no afã de conquistarem alguma popularidade, de saírem bem no “face”, de fazerem graça, de publicarem algo belo e criativo ou seja lá o que for, fazem uma espécie de selfie de suas atitudes numa pose sem qualquer glamour e revelam que, no miudinho da vida, não foram nem tão honestos nem tão éticos quanto gostariam que todos fossem. As redes sociais são mesmo feito um espelho do que vivemos em sociedade e muitas vezes revelam exatamente aquele ângulo que se quer ocultar.

Não é por acaso que mais e mais empresas passaram a usar as redes sociais para a avaliação do perfil de seus funcionários e daqueles que se candidatam a vagas de emprego. No terreno da informalidade, não é difícil identificar inconsistências entre o que diz um currículo e a prática do indivíduo em sociedade. Entre plágios, tretas, indiretas, alfinetadas e recomendações, a dissonância entre o discurso e a conduta cresce, aparece e desvela o dono do perfil. Ditar regras é bem mais fácil do que se esmerar em cumpri-las.

Não dá para esperar que caia do céu um mundo cheio de honestidade e de ética. É a sociedade que faz do mundo o que ele é. E somos nós que constituímos a sociedade. É o somatório de uma porção das nossas pequenas (ou grandes) atitudes que tece a trama do mundo. Somos todos fios integrantes desse imenso tecido. O Brasil, a vida, as relações sociais e interpessoais precisam urgentemente de discursos mais afinados com a prática. É preciso calibrar nosso diapasão.

A mudança de conduta para a construção de relações e de lugares melhores precisa começar do individual para o coletivo e pode/deve ter início a partir de gestos muito simples, como, por exemplo, dar o devido crédito a quem o tem numa singela postagem nas redes sociais. É fácil, indolor, honesto e muito elegante.

A ética está ao alcance de nossas mãos, é bom que aprendamos a usá-la sem moderação.

(Publicado no Diário de Petrópolis em 29/08/2018)




OBSERVAÇÃO IMPORTANTE:
Imagem retirada do site:
https://bhdicas.com/afinal-o-que-e-etica
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domingo, 17 de junho de 2018

Salve a liberdade de escolha!

Jardim do Palácio Quitandinha
Até pouco antes do jogo de estreia do Brasil na Copa da Rússia, eu não tinha decidido se iria ou não assistir à partida. E muita gente pode não acreditar, mas sequer sabia o horário da disputa. Não que vivesse qualquer dilema por conta disso, apenas não via nenhuma urgência em tomar uma decisão. Tinha marcado um forrozinho esperto com meu pai para aproveitarmos o início da tarde cantando e dançando. Mantivemos a programação. 
Até então, vinha acompanhando as manifestações de torcedores e não torcedores da seleção Canarinho, sem achar que sim nem que não, mas que cada um tem a sua maneira de reagir a um mesmo evento e à situação em que se encontra o país. Continuo achando isso. Pelo menos nesse sentido, ainda é possível o exercício da liberdade.
Mas foi olhar o Quitandinha assim todo decorado, preparadíssimo, um luxo mesmo para receber os torcedores, que o clima da Copa chegou pra mim. Saímos do forró, que por sinal foi maravilhoso - eta, grupo porreta o tal do Ziriguidó! - correndo pra casa para acompanhar com a família o jogo do Brasil.

Jardim do Palácio Quitandinha decorado para a Copa

O time não venceu, mas ganhamos o dia. Assistimos ao jogo juntos rindo, brincando, torcendo, comentando, arrancando os cabelos com as oportunidades de gol perdidas, bem como com as injustiças da arbitragem e passamos um bom pedaço da tarde em plena curtição.

Falava com uma amiga dia desses, que todos nós merecemos "um descanso na loucura" e que de amor, paixão e alegria, estamos todos precisados. Assim nos diziam Guimarães Rosa e Drummond, com alguma diferença, é claro. Hoje o futebol me salvou do absurdo e de tudo mais que estamos presenciando. Vivi uma hora e meia de recreio e quero mais. Nas horas restantes, eu penso em coisa séria. 

terça-feira, 12 de junho de 2018

Retrato

O menino passa com sua caixa de sapatos
pedindo uns trocados em plena 16 de março
engulo as lágrimas
calo o choro
tenho a boca seca
e a alma encharcada de pranto.

Ouço a moça sentada na calçada na porta 
do mercado da Marechal Deodoro,
com o filho mal agasalhado nos braços,
a murmurar-me um pedido de frutas
para adoçar a boca (ou aquecer a alma?)
do rebento.
Nego, sigo, empaco.
O murmúrio nos olhos daquela mulher
me fez olhar para trás.
Flagro uma senhora
(quem sabe a mãe da moça)
devorando uma espécie de tangerina,
ainda meio envolta em cascas.
A cena é dura
a fome com que come corta-me.
Volto.

A jovem com o filho nos braços
e com olhos súplices me encara.
Cruzamos olhares, trocamos falas:
- Que frutas seu filho come?
Dou-lhes uma porção das escolhidas
que, sei, não matará suas fomes 
- plurais -
apenas por hoje, quem sabe amanhã ainda
tornará suas vidas um pouco mais palatáveis.
A Criança dorme
a Senhora fita-me
a Moça me doou um sorriso:
alimentou-me.
Prossigo.

Pelo caminho, meus olhos sangram
desse, às vezes, sangue sem cor
que vertemos de tristeza.
Preciso café
expresso pequeno e forte
enquanto enxugo o pranto.
Sigo.

Passo pela Praça Paulo Carneiro.
Onde antes havia caminhas para cachorros,
há uma fina manta cor de rosa estendida no chão:
um Homem dorme.
As camas dos cachorros já não há
um Homem dorme no canto da praça
desamparado até pelos cachorros
que estão juntos se aquecendo
ao centro dela.
Havíamos dado cobertor às gentes
e começávamos a ajudar os bichos.
Que retrocesso!

Engulo seco
não dá mais pra não notar
a Fome, o Medo e o Desamparo
estão berrando em vias públicas
de cidades, de estados, do país.

Levei um soco
era domingo
hoje é terça
e a Dor não passa.

sábado, 9 de junho de 2018

Lindos e graciosos

Surya Trio
E como se o destino quisesse iluminar ainda mais a serra, uniu três músicos pródigos de carisma e talento e lhes deu a sentença: "Vai, Surya, vai ser luz nesta vida!" E o trio não só aceitou, como honrou o veredicto. Surya é Sol, é Luz, é a música nos dando um sorriso. É emoção à flor da pele e puro encantamento.
Foi a sensibilidade de Guilherme Mará que deu início ao grupo. Tendo sido convidado para tocar em um evento em Petrópolis, Mará avaliou que o lugar pedia a junção ousada de sanfona, violino, cello e pandeiro e não perdeu tempo: convidou Frida Maurine e Yuri Garrido para a ocasião. Sob as bênçãos do acaso e da sensibilidade nascia o Surya Trio.
No último domingo, o grupo se apresentou nos jardins do SESC Quitandinha e aqueceu a manhã fria e cinzenta à beira do lago. Foi tudo som. Foi tudo cor. Com um delicioso e variado repertório que foi de Chiquinha Gonzaga a Dominguinhos e Nando Cordel, o trio iluminou o dia e encantou o público presente.

Segue uma pequena mostra daquela manhã em um videozinho amador para lhes abrir o apetite. Iluminem-se!
Surya Trio
Guilherme Mara - Sanfona/Cello
Yuri Garrido - Percussão
Frida Maurine - Violino


domingo, 20 de maio de 2018

No Amor, no Vale e na Vida

Vale do Amor – Fazenda Inglesa, Petrópolis

Dia desses, tive oportunidade de voltar a um espaço que está causando muito burburinho em Petrópolis: O Vale do Amor. O local, que pertence à Fraternidade Cósmica Universal e que, além de lindo, tem uma energia incrível, ainda está em construção e, segundo me informou um dos responsáveis por sua conservação, foi descoberto pelo público antes do tempo. Para mim, que gosto de acompanhar o processo de fazimento e transformação de coisas, lugares e pessoas, esse é mais um dos atrativos do lugar.

Visitá-lo pode ser em tudo simbólico. Desde o acesso, que conta com trechos de chão batido e que exige alguma perícia ao volante para driblar os obstáculos, é possível transcender o plano físico e partir para a prática reflexiva. Afinal, o amor, até mesmo o próprio, pode ser lindo, mas nem sempre é fácil, nem sempre é doce, nem sempre é uma viagem tranquila em uma estrada perfeita e pavimentada. Quem nunca derrapou na estrada amorosa que atire a primeira pedra e lance ao lixo todas as suas caixas de lenços de papel. E por falar em pedras, há muitas delas no caminho. É preciso transpô-las com o máximo de cuidado e prosseguir, no Vale e na vida.

Segundo Sérgio Fecher, idealizador do espaço, o Vale é a proposta de um Asham Universalista com elementos das culturas cristã, budista, taoísta, hinduísta e umbandista com o objetivo de promover uma conexão entre o ser humano e a grande força criadora do Universo. Tudo isso cercado de uma enorme variedade de plantas e jardins, de cantos dos mais variados pássaros, do barulhinho de água correndo por entre as pedras, do ar puro e do frescor de uma cidade serrana. O local é encantador e tem muito a oferecer. É um oásis eclético e parece nos dizer o tempo todo que no amor, no Vale e na vida, preconceitos não devem ter vez. Não é à toa que o espaço nos conduza naturalmente ao respeito, à contemplação e à meditação e nos conecte com o amor em cada detalhe.

Localizado no fim do bairro Fazenda Inglesa, não é difícil, diante de uma desatenção, errar o acesso até lá. Como no amor, é possível que os distraídos peguem uma ou outra estrada que não os levará ao destino desejado. Eu mesma já errei o caminho no Vale, no amor e na vida, e nem por isso deixei de me encantar com a paisagem, tudo é parte integrante da caminhada. Na direção do Vale, no entanto, se prestarmos atenção, há umas plaquinhas rústicas indicando a direção, o que facilita bastante o percurso.

Descobri-lo é parte do deslumbramento. Ele é um todo integrado à natureza e está localizado no ventre de uma reserva de Mata Atlântica, pródigo de vida. Traz em si a proposição de uma peregrinação entre um espaço e outro, sempre em aclive. Assim sendo, para desfrutar de sua beleza, diversidade e quietude é preciso disposição para caminhar, especialmente em pequenas subidas. O trajeto é amorosamente acidentado, não muito, apenas o suficiente. Logo, o ideal é usar roupas leves e que permitam a liberdade de movimentos, bem como calçados confortáveis e de solados aderentes para evitar escorregões na descida. O lugar combina com simplicidade, algum esforço, equilíbrio, moderação e nos faz lembrar que leveza e prudência são sempre bem-vindas na vida, no amor e no Vale.

Como já disse, o espaço fica no seio da Mata Atlântica. Desse modo, é bom ter em conta que consciência ecológica não faz mal a ninguém. É imperativo evitar quaisquer danos à natureza, ali ou em qualquer outro lugar a que se faça uma visita. É fundamental aproveitar o ensejo para o exercício do respeito à flora e à fauna locais em cada parte e o tempo todo. Além disso, o Vale do Amor é fruto do sonho de alguém, é bom que não se perca isso de vista.  Sou o tipo de pessoa que entende que o simples fato de estar pondo os pés nos elevados sonhos de alguém já deveria bastar para se ter consciência de que se está a pisar em território sagrado. O espírito afobado de turistas esbaforidos não combina com a atmosfera e destoa do ambiente. O lugar pede uma postura mais introspectiva e respeitosa. Deus é antes de tudo respeito, independente da religião de que se faça parte.

Um sonho. É assim que me refiro ao lugar. É desse jeitinho que o sinto. Um espaço para estar pertinho do Criador e de suas criaturas. Uma oportunidade de flerte com os mais variados aspectos de diversas filosofias e religiões, ou simplesmente um momento de estar em contato com a natureza. Uma oportunidade para se aproximar de si mesmo, de se ver, de se ouvir, se acarinhar. De ofertar a si a beleza e a paz, que são santos remédios para as intempéries da vida. Para ir até o lugar, não é necessário ter crença, mas é imprescindível ter/ser/sentir amor. Amor no sentido lato. Eu recomendo.


Outras fotos disponíveis em:

Informações sobre o projeto podem ser encontradas no site da 
Fraternidade Cósmica Universal:



sábado, 5 de maio de 2018

Filosofando


Numa sala de aula, a professora de Filosofia da filha de uma das minhas amigas – com toda a distância que essa descrição sugere, já que da educadora não sei sequer o nome - passou uma tarefa para casa: assistir a um determinado filme em companhia da família. Cumpridora de seus deveres e parte integrante de um núcleo familiar amoroso, atento e atuante em tudo o que diz respeito a sua educação, a jovem realizou com prazer e louvor o trabalho proposto pela escola (isso nem sempre é possível). Assistiu à película, conversou longamente sobre ela com os pais e juntos analisaram, interpretaram, criticaram, apreciaram, trocaram.

No trabalho, durante o almoço, a mãe da menina repartiu a experiência. O papo esquentou, a conversa fluiu. Resultado: saíram todos da mesa com uma vontade imensa de devorar a obra cinematográfica em questão, meu inclusive. Bastante inquieta e curiosa, tratei de me movimentar e assistir a Para sempre Alice, um filme baseado no livro de Lisa Genova, que foi produzido em 2014 e ao qual, por uma razão ou por outra, ainda não tinha assistido.

O longa, que deu o Oscar de melhor atriz a Julianne Moore pelo papel de uma renomada linguista que sofre precocemente do Mal de Alzheimer, põe o espelho diante de nós, reflete e nos faz refletir sobre a possibilidade de um dia perdermos nossa autonomia, nossa identidade, nossas marcas registradas.  Trata da nossa finitude sem se ater ao inexorável destino que teremos todos nós. Ao contrário disso, fala das diversas mortes possíveis de se experimentar ainda em vida: a morte da memória, dos desejos, da consciência e do embotamento da inteligência. Diz sobre a morte social, sobre o fenecer dos vários papéis que exercemos ao longo da vida. E do nosso nascimento em outros papéis muitas vezes desconfortáveis  em face de uma doença. Além disso, olha de maneira sensível e competente para a reação daqueles que estão em torno de nós em cada um desses "falecimentos". Das dificuldades de lidarem conosco e com eles mesmos diante dessas situações. Das angústias de ser cuidador.

Para sempre Alice é, antes de tudo, uma belíssima reflexão sobre a impermanência. Sobre o fato de sermos todos os dias um pouco novos, um pouco outros de nós mesmos, para o bem e para o mal. Dependendo da situação. É também um nítido retrato da necessidade de nos movimentarmos para a adaptação e o convívio com as novas situações. É, sobretudo, a exposição clara e inequívoca de que não temos o controle absoluto de nossas vidas em nossas mãos. De uma hora para outra, tudo pode mudar. Enxergar isso pode ser um diferencial na hora de eleger nossas prioridades. Pode nos fazer buscar a essência.

Ao falar sobre as perdas e limitações impostas pela doença de que sofre a protagonista, o filme nos aproxima sensivelmente daqueles que somos hoje e nos faz querer viver melhor a partir de já, de ontem se fosse possível. Fixa-nos um pouco mais no presente e nos transforma um tanto. Aproxima-nos dos nossos afetos, dos nossos amores, de tudo o que nos é caro. Avizinha-nos do valor que tem nosso tempo.

O discurso de Alice para uma plateia de médicos em um congresso é um dos pontos altos do filme. Vemos ali toda a riqueza de seu intelecto a serviço da melhor qualidade de vida para ela mesma e para os que a cercam. Convivemos com os mecanismos criados por ela para, dentro do possível, vencer os limites impostos pela enfermidade que a acomete. Experimentamos seu sentimento de perda,  sua consciência sobre tal agravo, sua coragem para o enfrentamento do problema e sua luta. Deparamo-nos com a generosidade de alguém que quer, com a sua história, contribuir para a maior compreensão dos sentimentos e o melhor atendimento de portadores da mesma doença. A cena do discurso de Alice é daquelas que devem ser revisitadas de vez em quando. É um tremendo estímulo para valorizarmos cada momento vivido, já que a vida é o somatório de momentos vivenciados ou não. É bom ficarmos de olho no piloto automático.

Mas você lembra onde começou nosso bate-papo? Isto mesmo: numa escola! Nossa conversa é fruto da tarefa proposta dentro de uma sala de aula num colégio que jamais frequentei, reverberando aqui em casa, em você e sabe-se lá onde mais. É a Filosofia gerando frutos e nos alimentando. Cumprindo o seu papel de contribuir para o crescimento individual e coletivo numa onda de reflexão. A Filosofia, a Educação e o Professor  têm mesmo dessas coisas, não é à toa que metem medo em tanta gente muito mal intencionada.
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UM POUCO MAIS:
Neste link é possível baixar um excelente artigo da escritora Heloisa Seixas, Flertando com as sombras. O texto trata das dificuldades que ela teve ao precisar lidar com a mãe acometida por Alzheimer e também sobre o enfrentamento de outras dificuldades. Coincidentemente, caiu-me nas mãos enquanto escrevia essa crônica. Recomendo a leitura. Sobretudo para aqueles que lidam com essa questão.
https://www.sescsp.org.br/online/artigo/12016_FLERTANDO+COM+AS+SOMBRAS

TRAILER DO FILME: